quarta-feira, 8 de maio de 2013

A TESE - LIVRO PELA INTERNET - AUTORIA: eduardo gantois

Estamos re-publicando o primeiro livro de nossa autoria. Pensávamos que já tínhamos feito, contudo, verificando melhor, só havíamos publicado apenas uma parte. Só alguns capítulos. Esperamos que agrade. É uma história quase verdadeira não fosse os acréscimos que fizemos para torná-lo mais atraente. Um casal de franceses passou um tempo nos Alagados de Itapagipe. Isso é verdade!
A TESE

1
Os sociólogos Pierre e Angéline faziam um curso de extensão na Universidade de Paris. Para completá-lo  era necessário apresentar uma tese. Como eram casados, a Universidade aceitou que os dois fizessem um trabalho conjunto, a duas mãos. Já tinham o assunto: seria sobre os Alagados de Itapagipe na Bahia, Brasil. Não seriam apenas considerações buscadas em pesquisas pela internet e outras fontes. Em verdade, queriam viver a realidade das coisas, ou seja, morar por um determinado tempo no próprio “Alagados” e sentir toda a extensão de suas dificuldades. Tinham conhecimento que as famílias que lá residiam viviam exclusivamente do consumo e venda dos mariscos que pescavam ao redor de suas residências. Pouca gente tinha emprego ou não havia nenhum emprego. Seria uma experiência de vida extraordinária o que daria à tese uma autenticidade singular e marcante. Precisavam, contudo, de determinadas providências. Claro! Inicialmente uma palafita igualzinha a de outros moradores; pouco ou nenhum dinheiro no bolso; as roupas apenas necessárias; a cara e a coragem para enfrentar uma vida subumana. 
A idéia surgiu quando Mendes, o baiano, lhes falou sobre os Alagados, uma invasão do mar feita em 1953 por milhares de pessoas pobres oriundas do chamado Recôncavo Baiano e das ilhas do arquipélago da Baía de Todos os Santos que ele, Mendes, enaltecia como sendo a mais bela baía do planeta. Dizia que, na ocasião, morava perto, mas Pierre e um pouco Angeline, desconfiavam que ele próprio e sua família fizeram parte do grupo dos invasores. Ele contava com muitos detalhes como se deu a invasão. Só uma pessoa que tivesse vivenciado aquela situação poderia descrevê-la com tanta minúcia.  Em tempo, Mendes fora colega de Pierre e Angelina na mesma faculdade. Sua família morava em Salvador. Quando ainda na Faculdade, todas as vezes que Pierre o encontrava, bombardeava-o com perguntas sobre os Alagados.


Baía de Todos os Santos



- Porque tanto interesse Pierre?

- Vamos fazer nossa tese de mestrado com base nos Alagados que você tanto fala e elogia. Eu e Angeline vamos à Bahia.

- Eu? Elogiar? Jamais! Sempre me referir a ele como um problema social, um dos maiores que se conhece em todo o mundo. Ninguém pode elogiar uma coisa daquela, muito pelo contrário, até se estanha ter acontecido e de relação a sua ida à Bahia, gostaria que fosse por outro motivo.

- Mas você vai nos dar apoio, não vai?

- Claro! Somos amigos. Será um prazer recebê-los em minha terra, mas justamente em razão dessa amizade é que me preocupo. Você mora em Paris, uma cidade maravilhosa. Vocês vão estranhar muito, principalmente Angeline. Aquilo não é lugar para uma mulher como ela. Será um choque!

-Mas é justamente por causa dessa diversidade que queremos ir. Talvez a nossa tese quando for divulgada se o for, possa ajudar de alguma forma a melhorar o atual estado de coisas  ou sirva de alerta para que tal não aconteça em outras partes do mundo. Nós lhe avisaremos com antecedência quando iremos.

Desde então, o casal fazia um curso intensivo de português e pela internet fazia freqüentes pesquisas sobre os Alagados. Sabiam em que ano começou – 1943 – no bairro chamado Uruguai e teve seu ápice em 1953 nas proximidades da Ribeira, mais precisamente no chamado Porto do Mastros.

Alagados de Itapagipe

Sabiam também que o processo de erradicação das palafitas se deu em 1992 e continua até hoje, desde que ainda existem muitas delas. 
Pessoas ilustres de todo o mundo já visitaram os Alagados como o senador John Kennedy, Madre Tereza de Calcutá e o papa João Paulo II. Deve ser algo bastante interessante. Foram em frente.

Decorridos alguns meses, Pierre ligou para Mendes no Brasil. - Caro amigo, Estamos quase prontos para viajar para a Bahia. Possivelmente dentro de três meses. Você já alugou a palafita, conforme combinamos?
- Está em andamento. Será um prazer revê-los. Como vai o português? Podemos falar um pouco na minha lingua.
- Claro, José Mendes Bacelar,  às suas ordens. De que falamos? Da língua portuguesa? Como vai a família? Angeline está mandando um abraço para você e sua esposa. 

-Pierre, pelo amor de Deus. Você está falando que nem um português. O professor de vocês é português ou brasileiro?
- Português, claro! Não é a mesma coisa?
- A escrita é igual, mas a pronuncia é diferente. Vocês terão dificuldade em se comunicar. Tenho uma idéia. Ai em París existe um academia de capoeira, cujo professor é baiano. Eu a frequentava. Muitos brasileiros tambem frequentam.  Sugiro que vocês se matriculem. Assim, no dia a dia dia, terão condições de falar como eles, inclusive gírias. Ainda vai dar tempo.
- Faremos o que você está sugerindo. Eu não sabia das diferenças. Me dá o endereço da tal academia. Vai ser até bom aprender um pouco de capoeira. Talvez venha a precisar usar no seu Alagados. Você uma vez me disse que a coisa lá é braba. Vou me preparar.
- Tudo bem. A academia fica no seguinte endereço – passou o endereço – Estou com vistas em duas palafitas, devo alugar uma delas, ainda este mês. Tanto uma com a outra estão precisando de alguma reforma.
- Não queremos nada de luxo. Só o essencial.
- Luxo? Nunca haverá luxo em uma palafita. A reforma que lhe falei trata-se de reforçá-la, prin- cipalmente, a base de sua sustentação sobre a lama. Telhado. Essas coisas. Em dias de grande maré e ventos fortes, se os paus que as sustentam não estiverem bem, ela poderá desabar. Tem acontecido muito por aqui. É preciso um certo cuidado. Aliás, muito cuidado! No mais, providenciarei um lugar onde vocês possam viver razoavelmente bem. Redes, mesa e cadeiras e uma pequena cômoda para guarda das suas coisas. Estou pensando em colocar um fogão.
- Fogão não. Tenho lido na internet que as pessoas improvisam uma espécie de fogão com tijolos. Quero a mesma coisa.
- Está bem, sei como é este fogão. Realmente funciona. Funciona até como lareira. Em dias frios, o que aqui é raro, ele aquece o ambiente se mantido aceso. Mas tem muito umidade. Pode ajudar. Deixe comigo. Se algo estiver em excesso, será removido.
E água e luz?
- Você as terá. Serão puxadas extensões da casa vizinha. Uma passa para a outra e assim sucessivamente. São gatos.
- Gatos?
- Desculpe! São ligações clandestinas. Tem inicio na avenida que passa em frente. Aqui ninguém paga água e luz. No princípio, as empresas do governo, colocaram medidores na palafita mais próxima da avenida e esta distribuia para as demais, mediante o pagamento de uma taxa divisória para cada uma. Mas logo os medidores eram como que “roubados” e a água e a luz passavam direto. Não adianta o controle. As palafitas são incontroláveis!
- Tudo bem, estou desligando. Ainda hoje vou procurar a tal da academia de capoeira.
2
Mendes Bacelar já  era professor da Universidade da Bahia. Tão logo retornou da França fez concurso e foi nomeado.  A maioria das aulas era à tarde. Tinha as manhãs livres. Numa dessas, pegou o carro e foi até o Lobato onde havia alugado a palafita. Através informações junto a moradores do local, contratou um marceneiro residente no local, portanto com  experiência própria  e específica – a fim de fazer o que era necessário para melhorar em tudo por tudo a palafita que “abrigaria” os franceses.
- Primeiramente, teremos que reforçar as suas bases. Duplicarei a segurança com novas estacas, bem mais fortes do que estas. O telhado atual é de folhas de amianto. Não é aconselhável. Esquenta muito e dizem ser perigosas à saúde. Mudarei para uma cobertura vegetal. Farei também uma aréa externa, uma espécie de varanda, de onde se pode pescar e conversar. Dessa varanda, sairá uma escada de acesso ao mar. Uma espécie de pier.

-Cuidado. Nada de luxo. Apenas o necessário
Faltavam 15 dias para os amigos chegarem. Mendes foi até à Feira de São Joaquim e comprou duas esteiras e algumas latas entre medias e grandes. Adquiriu tambem 100 sacos plásticos.  No shopping comprou dois travesseiros, dois lençóis, duas fronhas, quatro toalhas de banho, ums pequena poltrona, um pequeno armário, uma mesa, quatro cadeiras,  talheres, facas e colheres, duas panelas de barro e uma frigideira; numa casa de material de construção comprou 10 tijolos, um saco de carvão, duas lâmpadas de 60 wats, um martelo, um alicate, uma chave de fenda, 1/2 metro quadrado de folha de metal, duas pazinhas de jardinagens, uma tesoura industrial e repelente de mosquitos.  Os tijolos e e a folha de metal  eram para a montagem do fogareiro, super exigido por Pierre. Achou que isto era o mínimo necessário. No mais – objetos e produtos de uso pessoal – eles deveriam conduzir.
Levou tudo para a palafita. Foi a primeira vez que a viu pronta. Achou bastante razoável . Dois ambientes. No de trás, um reservado para o que se chamava de sanitário, isto é, um buraco recortado no assoalho. Alí seriam feitas as necessidades fisiológicas. O marceneiro tinha feito um bom serviço, inclusive revestiu o piso e todas as laterais da palafita com argila, afim de evitar incêndio.  Conforme sua orientação, tinha fixado os prendedores das redes nas vigas mais resistentes. Colocou-as no lugar. As esteiras foram deixadas num canto, ainda enroladas. Eles que decidissem onde colocá-las. Os tijolos e a chapa de ferro ficaram em um canto. Os travesseiros ficaram em cima da potrona. Numa porta lateral da mesma, colocou as toalhas de banho. Tinha três gavetas. Na primeira colocou os talheres. Na terceira  o martelo, o alicate, a chave de fenda, a tesoura, as pazinhas e o repelente. Deixou vazia a do meio. Colocou as lâmpadas e acendeu-as. O próprio marceneiro tinha feito a fiação puxando o “gato” da palafita mais próxima. Em baixo de uma delas posicionou a mesa e as quatrro cadeiras. Eram de plástico branco-leite.   
3
Sobre as necessidades fisiológicas – Mendes e Pierre conversaram longamente pela internet. Algo deveras importante! O baiano queria instalar um vaso sanitário dígno, principalmente por causa de Angéline. Pierre fora totalmente contra. Queria tudo o mais natural possível. Se era assim que os palafiteiros faziam as suas necessidades, eles também as fariam da mesma maneira.  Era uma coisa pertinente ao homem.
- Mas Pierre. A tese de vocês não será prejudicada porque há um vaso sanitário na palafita. Vocês querem pesquisar como é possível uma família viver sem dinheiro no bolso. É isto que estou sabendo.
- Justamente isto! Mas as condições habitacionais têm que ser as mesmas. Um vaso sanitário numa situação desta é fundamental para tirar a realidade das coisas. Tem que ser real. Já não gostei quando você falou que a palafita foi reformada. Tem dois ambientes e até uma espécie de varanda. As outras tem isto?
- A reforma foi necessária por questões de segurança. Não quero ser acusado de crime doloso ou culposo. Bem capaz de me enquadrarem no primeiro caso – com intenções de matar .
- Intensões de matar? Você as têve aqui em París? Torcia para que não fôssemos à Bahia. Como insistiamos na idéia, você deve ter pensado em nos matar.  Morreriamos de qualquer jeito, segundo você.  Não resistiriamos às agruras de morar numa palafita. Morreriamos de fome, principalmente se enjoássemos dos tais papa-fumos  ou tívéssemos uma infecção.
- Você está de brincadeira. Vamos falar sério. A palafita estava muito ruim. Poderia cair com o aumento de peso de vocês dois, ou uma onda mais forte, ou uma rajada de vento. Aqui tem uns canais de vento perigosos. Também não seria justo um total desconforto. Vocês não teriam cabeça para escrever nada. É preciso pensar desse jeito, Pierre. Não queira ser tanto real. A vida não é assim! Não se sai de Paris para os Alagados da forma como você pensa.
- E o pessoal que está ai, têm este conforto? Segundo você me conta a miséria é grande.
- É diferente Pierre. Esse pessoal nasceu e cresceu aqui a vida inteira. Eles devem ter o coração como se fosse uma ostra bivalve. A concha protege e fortalece o órgão contra as intempéries da vida. É como eles não sentissem nada. No seu caso e no de Angéline, os corações de vocês não estão protegidos para essas coisas. Irão fraqueijar no primeiro momento.
- Vamos falar sério. Estava meio de brincadeira. Você tem toda razão. Nós só temos que lhe agradecer o trabalho que você está tendo. Não temos como pagá-lo. Somente lhe oferecendo o melhor de nosso apreço. Falando em apreço, qual o perfume que sua mulher usa?
- Não se incomode com isto.
- Qual o perfume?
- Paris.
- Estou desligando, estaremos aí no próximo domingo. O vôo sai daqui às 22 hóras de sábado. Air France. Deve chegar aí por volta das 6 ou  7 da manhã de domingo. Au revoir mon ami!
-Au revoir mon ami têtu.
4
O vôo atrasou e só chegou a Salvador perto das 11 hóras. Mendes e Ana sua esposa, foram recebê-los. A bagagem do casal era relativamente pequena. Constava de uma mala grande e duas pequenas e ainda duas mochilas. Após os abraços de todos, Mendes sugeriu que almoçassem numa churrascaria. Eles estavam loucos para conhecer esse tipo de restaurante. Em Paris era muito difícil, parece que nem existia, ao que se sabia. Era o inverso mais do que  conceitual das comidas francesas
Ficaram admirados de tanta carne. De boi, de porco, de frango, de bode, de carneiro, de javali e até peixe – salmon – Era impressionante a variedade de saladas. Tinha comidas japonesas e italianas. Jamais comeram tanto. Queriam experimentar de tudo.
- E eu que pensei que Paris fosse a capital da gastronomia, enganei-me redondamente.
- É diferente Pierre A comida de vocês é excelente e sofisticada. Talvez tenha um defeito. É pouca. Aqui se come muita carne. O Brasil é o maior produdor de carnes do mundo. Se este almoço fosse em Paris, seria caríssimo. A carne lá é muito cara. Você sabe disso!
- É verdade! Mas vocês comem assim todos os dias, perguntou Angéline?
- No dia a dia, a nossa comida é muito simples. É arroz com feijão, um pedaço de carne, uma salada, normal, macarrão, peixes, por aí, respondeu Ana. Vez em quando a gente faz uma farra como esta.
- É! E você não é gorda. Chega a ser magra, mais do que eu.
- Eu ando muito. Faço um cooper todos os dias no calçadão da Barra, onde moramos. Também faço natação na Praia do Porto. Na clínica eu não paro. Ana era médica.
- E você Mendes Bacelar faz também exercícios?
- Também. Geralmente acompanho Ana.
Em torno das 14 hóras pagaram a conta e se dirigiram ao apartamento de Mendes e Ana. Era uma cobertura. Três quartos. Um para eles; outro reservado para hóspedes e um terceiro era uma espécie de escritório e biblioteca. Ainda não tinham filhos. Tinha livros por todos os lugares. A vista era maravilhosa. Via-se o mar de um lado e do outro, grande parte da cidade de Salvador.
- Vocês poderão dormir aqui hoje e amanhã os levarei para a palafita. É aconselhável chegarmos de dia. Tem o problema do acesso. A palafita fica na extremidade de um avanço. São quase 100 metros de pontes de madeiras. A noite, torna-se perigoso, até que se tenha pleno conhecimento de suas armadilhas.
- Armadilhas, exclamou Pierre?
- Oh. Desculpe. Quiz me referir a uma tábua meia solta. Uma saliência qualquer. Poderá ocasionar uma queda e a pessoa cair na lama ou na água, conforme esteja a maré cheia ou vazia.
- Deve ser mais perigoso com a maré cheia, interveio Angéline.
- Ao contrário. Vocês sabem nadar, segundo eu sei. É só nadar para a margem. Por outro lado, quando a maré está totalmente vazia, nunca se sabe o que está lá embaixo. As vezes o resto de uma árvore de mangue como se fosse uma lança ou um caco de vidro. As vezes uma cadeira de plástico quebrada. O pessoal joga tudo no mar e a maré na alta, movimenta muita coisa que estaciona entre as varas de apoio das palafitas. É sempre aconcelhável evitar caminhar por essas passarelas de noite. Tudo que se queira fazer,  tem que ser de dia, a não ser pescar, conforme a maré esteja vazia na parte da noite, mas neste caso, vocês terão acesso direto à lama pela sua própria palafita. Ela é extremada. Tem vista permanente do próprio mar. É uma vantagem. Mas fiquem à vontade. São 4 hóras. Às cinco se vocês quizerem poderemos dar uma caminhada na Barra e até nadar.  Assim, vocês já ficam conhecendo um pouco da Bahia.
-Ok! Estaremos prontos.
Desceram a Ladeira da Barra onde ficava o edifício onde moravam Mendes e Ana e logo alcançaram o Porto da Barra.
- Porquê Porto da Barra?
- Pierre. Aqui aportavam as naus portuguesas ao tempo do descobrimento do Brasil.  Era o “porto”. Como você vê é uma enseada com o mar tranquilo e boa profundidade já há dois ou três metros da praia. Também aqui estiveram os franceses, os holandeses e até os ingleses. É uma das melhores praias da Bahia. Foi classificada como a terceira melhor praia do mundo por um jornal inglês. Em cada uma de suas extremidades existe um forte. São Diogo e Santa Maria. Faziam parte do sistema de defesa da cidade de Salvador contra os invasores. Mais adiante tem outro. O de Santo Antônio, mais conhecido como Farol da Barra, em razão da existência de um farol no seu interior.



- E a água é fria?
- Não Angéline. Em torno de 25º. Aqui fora estamos com 29º. É uma dádiva.
- Depois, quero tomar um banho de mar.
Caminharam até o Farol e depois foram tomar banho de mar. Pierre e Angéline eram exímios nadadores. Mendes e Ana também. Os dois casais ficaram no mar até o sol se por. Os franceses ficaram maravilhados com a beleza do entardecer.



Por do sol no Porto da Bar


À noite, conversaram na cobertura do apartamento, à beira da piscina. Beberam, comeram. Ana preparou uma infinidade de tira-gostos a base de mariscos e encomendou uma pizza. Dançaram e se divertiram na piscina.
- O que você pretende com isto, meu amigo Bacelar? Pierre de vez em quando chamava-o pelo sobrenome
- Como assim?
- Você poderia ter nos levado diretamente do aeroporto para a palafita e no entanto nos proporcionou aquele almoço. Trouxe-nos para seu belo apartamento. Fizemos cooper e tomamos banho de mar numa água tépida que nunca vi em lugar nenhum. Agora de noite nos proporciona esses momentos agradabilíssimos. Sei que não é exibição. Eu lhe conheço muito bem. Suas intenções são bem outras.
- Pierre, vou ser sincero. Estava querendo lhe mostrar o lado bom da vida e por fim lhe pedir que desista de sua idéia de viver um determinado tempo numa palafita nos Alagados. A Bahia é muito froclórica. Tem outros ângulos para se fazer uma tese sobre ela. Suas festas, o modo de falar de seu povo, as igrejas, os fortes, tanta coisa, e você foi logo escolher uma de suas mazelas mais vergonhosas. Em contrapartida,  se você insistir na idéia, poderia de vez em quando pegar uma lancha na Ribeira e se aproximar delas. Poderia até comprar um barco ou uma canoa. É uma delícia.   Tem um canal. Poderá até pescar papa-fumo. Poderá conversar com as marisqueiras. Elas estão ali por todos os lugares, sem necessidade de morar lá.  É uma temeridade.
- A culpa é sua. Foi você que me contou sobre os Alagados, quando estudávamos em Paris. Até então nem sabia que existiam. Impressionou-me como as famílias conseguem viver apenas catando mariscos. Quero ver isto in loco. Se ao meio do percurso não suportarmos ligarei para você e voltaremos para a França. É difícil isto acontecer. Estamos realmente decididos, eu e Angéline.
- Está bem. Aqui tem meus telefones, fixo e celulares. Também consegui uma tábua de maré afim de que você saiba das horas de maré vazia e cheia. Papa-fumo só se pesca em maré vazia. Comprei o básico necessário para começar a se viver naquele lugar. Se precisarem de alguma coisa a mais que eu não tenha me lembrado, é so telefonar. Levarei imediatamente. Estou sempre aqui.
5
Às 8 horas do dia seguinte, estavam todos prontos. Os dois franceses estavam de bermuda caqui, mochilas atrás das costas, bonés, óculos escuros, Pareciam dois escoteiros ou dois caçadores prontos para um safari. Despediram-se de  Ana e seguiram de carro com Mendes para o Lobato, local onde fora alugada a palafita.
-Aqui, está a chave do cadeado da palafita. Volto a avisar. Qualquer coisa que precisarem podem telefonar que virei trazer. Procurei colocar o básico na palafita, mas sempre falta alguma coisa.
- Estamos cientes, chefe. Qualquer coisa e ligaremos para o senhor.  O manteremos informado. Estamos prontos para a operação “Palafita”. O mundo vai se assombrar!
- É impressionante como vocês estão encarando esse trabalho. Parece coisa de menino. Uma brincadeira. Cuidado com estas facilidades! O negócio é sério. É preciso muito cuidado. No caso de vocês é necessário grande dose de engenhosidade. Pensem muito!
- Realmente estamos brincando Mendes para disfarçar o nosso nervosismo. Tenho ciência das dificuldades que haveremos de passar. Mas se ficarmos tensos desde já, poderá ser pior.
- Deixo-os aqui. É a última das palafitas desse corredor. A oitava, se não me engano. Não tem erro. É a única com combertura de palha de piaçaba. Cuidado com as passarelas. Vá memorizando os locais mais perigosos. Anote-os, se possível. Evite andar à noite por elas. Sejam felizes. Deus os acompanhe.


Palafitas do Lobato
Os franceses saltaram do carro e por alguns minuitos ficaram olhando aquele panorama. O corredor onde se achava a sua palafita era um entre mais de 50, todos em paralela uns aos outros, avançando sobre o mar. A maré estava cheia e as águas quase encobriam a passarela. Respiraram fundo e começaram a caminhar. Angéline à frente, tinha melhor vista e mulher é mais cautelosa, mais cuidadosa. Quase ao fim foram surpreendidos por uma onda que inundou uma das passagens. Deixou ela voltar e logo após chegaram na palafita. Realmente, era inconfundível a sua cobertura. As demais tinham até esteira como proteção contra chuva e o sol. Outras, simples pedaços de tábuas superpostos. Uma até de papelão grosso coberto de um plástico transparente.
Abriram a porta e pouco viram. Estava escura. Abriram as duas janela laterais. Havia mais uma do outro lado. No lado do mar outra porta. Abriu-a e notou a projeção do assoalho além da lateral de madeira. Aliás, toda a palafita era de madeira, inclusive o assoalho. Pararam do lado de fora. Parecia uma varanda. Fora uma boa idéia de Bal. Poderiam mais tarde colocar uma mesinha alí. Por enquanto poderiam usar a mesma mesa e cadeiras que viram no centro da palafita.
- Alô. Bom Dia! Vocês são os novos moradores?
Era uma senhora que se debruçava na janela da palafita vizinha, mais precisamente, do corredor vizinho.
- Bom dia. Somos os novos moradores.
- Meu nome é Zefa, Maria José. O de vocês?
- Eu Pierre. Minha mulher, Angéline.
- Já percebi que não são brasileiros pelo sotaque de gringo e pelos nomes.
- Somos franceses.
A senhora mora sozinha?
- Não, também tenho marido. Está trabalhando. Ele se chama Manoel,  Manolo , é mais fácil. Pretendem pescar papa-fumos?
- Pretendemos .
- E vocês sabem catar. Tem material para isto? E o que vão fazer com eles? Tem onde cozinhar?
- Acho que temos alguma coisa que um amigo nosso comprou. Quanto ao resto, vamos aprender.
- Vamos fazer o seguinte. Estou convidando vocês para almoçarem conosco. Estou fazendo uma feijoada e haverão de gostar. Tenho fama de boa cozinheira. Já trabalhei até em restaurante lá pela cidade, no Rio Vermelho. Combinado. 12 horas.
Pierre e Angéline estavam surpresos. Assim de primeira. Nem menos chegaram e já estavam sendo convidados para almoçar por uma pessoa estranha.  Como a coisa é diferente por aqui. Mendes já os tinha avisado. O pessoal fazia amizade ao vento.  Era só ele soprar e já eram conhecidos há muitos anos!
Em seguida, entraram e analizaram com mais cuidado toda a palafita e o que havia dentro dela. Fora feita uma divisão ao meio com passagem sem porta à direita. Na parte mais ao fundo, outra divisão onde se podia dizer que era o banheiro. Um buraco oval no assoalho e uma tampa móvel. Tinha um ponto de água com um pequeno chuveiro. Mais ao lado, uma pia e um fogão de tijolos, já devidamente montado. Já estava com carvão para ser aceso. A outra divisão era como se fosse uma sala. Ao centro uma mesa de plástico com quatro cadeiras. No alto um ponto de luz. Só uma lâmpada que se acendia apertando-a. Numa das laterais dessa sala, estava instalada uma rede, super-colorida.  Dava alguma cor àquele ambiente da cor de  madeira. Deveria ser maçaranduba. Um divã e um banco . Em baixo da rede, um estrado com duas esteiras e dois travesseiros.  Sobre o divã, as roupas de cama, as toalhas, cobertores, alguns panos para diversas finalidades.
Levaram o resto da manhã arrumando as coisas. Por volta da 11.45 voltaram a ouvir a voz de dona Zefa. – Oi gente, podem vir. Meu marido já chegou. Na quarta palafita tem uma passagem que dá acesso a esse lado. Tenham cuidado!
Pierre e Angéline foram com a mesma roupa que vieram. Não deu tempo de tomar um banho. Angel quis colocar um perfume, pelo menos. Pierre foi contra.
- De forma alguma. Você vai impregnar a casa da mulher. Os cheiros daqui são diferentes.
- É um prazer recebê-los em minha casa. Não reparem. Não é como a de vocês que ficou uma beleza, mas eu gosto dela. Fizemos também algumas reformas ao longo do tempo que moramos aqui, cerca de 10 anos. Quando vier o aterro que está sendo anunciado, sentirei saudades. Este é Manolo, meu marido.
Devia ter seus 45 anos. Era muito branco. Tinha os olhos azuis. Meio careca. Era baixo e um pouco gordo.  Já Dona Zefa era mulata clara, braços bem torneados e um corpo surpreendente. Rodava ai pela casa dos 35

anos, talvez nem tanto. 
- É um prazer conhecê-los. Já me tinham falado da hospitalidade dos baianos. Nem ao menos conheci a senhora e já nos convida para almoçar em sua casa. Extraordinário! Esta é Angéline minha mulher.
- Manolo  é espanhol. É da Galicia. Eu sou baiana de Nazaré das Farinhas, uma cidadezinha do nosso recôncavo, perto da Ilha de Itaparica. Já conheceram a ilha?
- Ainda não, respondeu Angéline. Chegamos ontem. Mas iremos conhecer um dia.
- Estou curiosa. Aliás, baiano é assim, bisbilhoteiro. Porque vocês vieram morar aqui no Lobato? Vocês parecem pessoas de posse. Não estou compreendendo.
- Somos sociólogos. Estamos reunindo material para  uma tese. Escolhemos como tema os Alagados da  Bahia, ou seja, como se vive aqui,
- E onde vocês ouviram falar dos Alagados?
- Tivemos oportunidade de conhecer um baiano lá na faculdade. Ele era  mais adiantado do que nós.  É professor aqui na Bahia. Ontem passamos o dia com ele. Foi nos pegar no aeroporto. Foi ele quem alugou a palafita e tratou de reformá-la. Os primeiros informes vieram dele. Depois fizemos pesquisas na internet.
- Que idade vocês têm?
- Eu 28 e Angel 24. Chamo-a também assim. Angel.  É meu anjo.
- Mas, vamos ao almoço. Vocês devem estar com fome. Já conhecem a feijoada?
- Peguei uma vez uma receita na internet, mas não consegui encontrar todos os ingredientes em Paris. Deixei para lá. Sei que tem muitas carnes.
- É verdade, filha. Vocês vão ver. Se não gostarem não se obriguem a comer. Tem gente que só come o feijão. Deixam o melhor. Espero que vocês gostem de tudo.
Pierre e Anélinel adoraram. Gostaram mais do que o churrasco. Repetiram o prato. Dona Bela mostrava-se satisfeita. Ia explicando cada tipo de carne. – Um dia desses vou fazer para vocês um cozido. Também leva muita carne, mas em vez de feijão leva verdura.
- E vocês não comem mariscos, papa-fumo, por exemplo?
Essa é outra história filho. Nos primeiros anos, quando chegamos aqui, só comíamos o bendito papa-fumo. Não tinha outro jeito. Ainda comemos. Mas agora, variamos um pouco, senão enjoa. É muito gostoso de moqueca com muita pimenta. Vou ensinar a sua esposa como se faz. Já percebi que vocês são bons de garfo. Agora queremos conhecer a palafita de vocês, podemos?
- Claro. Podemos ir.
Dona Zefa e Manolo adoraram. Acharam ótima a idéia da varanda. Dali se poderia pescar até peixes. Em dias quentes, poder-se-ia até dormir no lado de fora. Almoçar também. Já tinham percebido o reforço que a palafita havia tido com estacas muito mais grossas que as usadas normalmente. Além de grossas, em maior número.
- Vocês devem ter gasto uma nota nesta reforma, não?
- Perto de 10 mil reais, aí incluso o madeirame interno e o revestimento em argila.
- Notei uma coisa. Vocês não têm geladeira. Como irão conservar os papa-fumos que pescarem? Não há como consumi-los ou vendê-los no mesmo dia. Vocês vão vender, não vão?
- Principalmente isto. Em verdade, a nossa tese baseia-se justamente em como a maioria do povo daqui consegue viver só da comercialização do papa-fumo.
- É preciso muito trabalho. Ter disciplina. Tem dias que você troca o dia pela noite e vice-versa. Não é uma coisa muito comum. Não sei se vocês irão agüentar. Não estou desencorajando-os, mas é preciso abrir os olhos. Esse povo, nós, temos uma efetiva necessidade de sobrevivência. Ou pesca e come o papa-fumo ou então morre. Está na alma. Não tem outra saída.
- Nós podemos fazer a mesma coisa.
- É muito diferente! Vocês não tiveram esta sobrevivência. Um dia qualquer, se não der certo, vocês pegam  suas mochilas e vão embora. Têm para onde ir. Devem ter pais ricos. Moram em Paris. Têm outras perspectivas. Esse povo, não. Não tem alternativas. Dessa situação surge uma força interior imensa e eles vencem, ganham a vida. 
- Nós também podemos vencer. Estamos determinados.
- Desculpe a franqueza, filho. Não estão! Vocês podem vencer de outra forma. Vai chegar um ponto, um determinado momento, que vocês deverão fazer crescer o negócio de pescar papa-fumo. Pescar, vender, comer, pescar, vender, comer... não faz o perfil de vocês nem de ninguém que não tenha crescido aqui. Sou filha de marisqueiros. Fui marisqueira. Sei o que é isto.
- Como assim?
- Vocês não vão se contentar apenas em pescar, vender, comer, pescar e assim por diante. Vocês irão descobrir outras formas de vencer. Vocês vão ver. Aliás, tomara que aconteça. Tenho toda fé em minha gloriosa Santa Bárbara. É necessário uma reviravolta e acabar com essa rotina miserável e pobre. A inteligência está com vocês. Nós não sabemos de nada.
Pierre e Angéline  estavam pasmos e olhavam admirados. Esta mulher é muito inteligente. Mais do que nós, contudo ela não pode ter tanta certeza assim. Nem ao menos tinham começado e estavam recebendo na cabeça um balde de água gelada.
- Desculpe filhos, não quero desanimá-los. Eu e o meu marido vamos  ajudar no que foi possível. Espero que vocês tenham todo o sucesso.
Olha! Ela como que advinha o que estamos pensando. Se eu pensar em alguma coisa aqui e ela de logo se adianta. Por exemplo, como começar?
- Vocês precisam se preparar para a primeira pescaria. A lua é de quarto crescente e a maré estará vazia e boa para a pescaria das quatro às oito, mais ou menos.
Viu? Na mosca. Ou seria normal que ela assim dissesse. Ela não podia ter esse poder.
- Estamos indo. A nossa geladeira está a disposição de vocês. Tem muito espaço. Já não pescamos mais. Só guardo comida. Amanhã lhes direi o que fazer com o resultado da “colheita”. Não quero encher a cabeça de vocês de muita coisa. Mas precisamos conversar. Deixe os papa fumos na lata com alguma água salgada aí do lado de fora. É o melhor lugar. Eles são como gente.  Gostam de ar livre. Pelo amor de Deus não os cozinhe hoje.
6
Colocaram roupa de banho e desceram. Parecia que iam para a praia, tomar banho de mar. De sobressalente somente um saco plástico e as duas pazinhas de jardinagem.
-Ei. Vocês. Aonde vão assim? Era dona Bela de novo, debruçada em sua janela.
- Pescar, claro!
Desse jeito? Calção e biquíni? Levaram pelo menos filtro solar?
- Passamos um protetor, respondeu Angéline.
- Voltem aqui. Tenho umas coisas para lhes dar. Não precisam subir. Jogo pela janela. Só um momento. 
Em poucos minutos dona Bela voltou com dois grandes chapéus de palha e uma lata de gás vazia.
- Os chapéus são  para a cabeça e a lata de gás é para botar os papa-fumos, ok?  Não misturem. Ah.Ah.Ah. Vocês estão loucos em ir para esse sol de três horas da tarde desse jeito? Vocês iriam se fritar para não dizer outra coisa.
- A lata de gás não é necessária, estamos levando um saco plástico.
- Um saco plástico? De 1 quilo? Viche! Vocês estão pensando o que? Um quilo de papa-fumos com as conchas não deve dar nem 100 gramas do animalzinho depois de catado. Não dá nem para vocês comerem, quanto mais para vender. Outra coisa: subam e coloquem uma camisa nesses troncos branquelos.
Pierre e Angéline olhavam um para o outro, não acreditando no que estavam ouvindo. Aliás, não era bem isto. A forma como esta mulher os repreendia. Parecia que ela os conhecia há longos tempo ou que era, talvez, filhos dela. Que autoridade! Mas não estavam ofendidos. Estavam admirados. Riam e diziam. - Tudo bem, tudo bem, a senhora tem razão. Nós somos mesmo uns  burros.
Devidamente preparados, partiram em direção ao aglomerado de marisqueiras que se agachavam há 200 metros de distância. Por alguns minutos olharam como elas faziam para pescar os mariscos. Umas se encontravam nos bancos de areia formados com a vazante da maré; outras na beirada do mar que havia recuado, mas dentro dele. Preferiram a segunda opção. Acharam mais confortável. Podiam até espichar o corpo e continuar catando. Algumas delas estavam nessa posição. Notaram que a maioria das mulheres estava de vestido de chita. Poucas usavam roupa de banho. Aquilo era trabalho e não banho de mar.
Pierre e Angéline se surpreenderam com a quantidade de papa-fumos existente. Introduziam suas pás na areia e vinham três a quatro de uma só vez. Já tinham enchido quase meia lata de gás. Pensaram no peso. Para o primeiro dia, acharam suficiente. Amanhã teriam que pensar como resolver essa questão. Dona Bela deveria saber.


Pesca do papa-fumo
Quando estavam próximos da palafita, já divisaram Dona Zefa na janela. Qual vai ser a bronca agora? Pensaram.
- Parabens! Sabia que vocês se dariam bem. Subam com a lata apenas com os papa-fumos, sem água. Fica menos pesado. Depois desçam e num saco plástico tragam um pouco de água salgada e a coloque na lata. Deixe-a na varanda a fim de pegar o sereno da noite. Depois de se aprontarem, venham tomar café conosco. Sei que vocês não tem nada para comer.
Pierre e Angéline já estavam acanhados. Comprovadamente, não haviam se preparado devidamente. Aquela mulher estava lhes dando um show de comunicação e autoridade. Chegava a ser matriarcal.  
Às oito da noite dirigiram-se para a palafita de Dona Bela. Manolo foi quem abriu a porta. – Zefa já vem, está se preparando.
Quando ela apareceu, Pierre quase não acreditou. Portava um longo estampado de seda que desenhava seu corpo. Ela realmente era uma mulata escultural. No pescoço um lindo colar de conchas de vários tamanhos e cores. Angel chegou a olhar para o marido com certo ciúme. Esta mulher não existe, pensou consigo. O que ela pretende? Estaria impressionada com Pierre?
- Sei no que vocês estão pensando, eu vestida dessa maneira. Mas não é nada disto. Hoje estamos completando 10 anos de conhecimento. Eu e meu querido Manolo. Em verdade não somos casados. Já que eu os conheci, vocês são meus convidados, meus únicos convidados. Ai surge vocês como num passe de mágica. Jovens. Bonitos. Instruídos. Franceses. Para que melhor convidados do que estes. Peço-lhes que compartilhem com a minha alegria. Não sei se estou pedindo muito? Os olhos lacrimejando.
Angéline caiu no choro baixo nos ombros do marido. Ao seu ouvido, falou:  
- E eu estava com ciúme dela. Pensei que ela estava dando em cima de você. Como sou burra, meu Deus. Ele – Prefiro você que é mais magra. Fica mais fácil. – Ela- Ah!
- Se a senhora tivesse me avisado, teríamos trazido um presente. Aliás, o presente está dado. Trouxemos  na mala  dois perfumes franceses. Espero que aceite um deles. Gosta de “Paris”, é um deles. É seu. Depois eu lhe dou.
- Preparei um pequeno jantar e temos um bolo. Também temos champanhe.  Não é francesa, mas é champanhe. Mais vale a intenção! A intenção é uma verdade. Para mim, esta champagne é verdadeira. Para vocês não, mas para mim é. O que vale é o motivo da intenção. O porquê . Na realidade, criamos em nossa mente o cenário que bem entendemos. Estão me compreendendo?
Pierre e Angéline entreolhavam-se admirados. Esta mulher era demais.
Foi servida uma frigideira de papa-fumos. Uma delícia. Com arroz. Ficaram até meia-noite conversando. Bela deu um show. Como ela tinha assunto. Manolo quase sempre calado. O que fazer ou falar diante de uma mulher daquela?
Depois ela voltou à praticidade das coisas. Estava preocupada com os mantimentos que o casal tinha em casa.
Manolo tem um mercadinho aí na avenida. Fica há poucos metros daqui. Sei que vocês não tem dinheiro por enquanto. É a mesma situação de muita gente por aqui de forma sistêmica. Para estes casos, Manolo tem umas cadernetas de compra. Vocês compram o que querem. Ele anota quantidade e preços e vocês pagam ao final do mês, de acordo com a venda dos mariscos. Era assim que seus antepassados faziam quando emigraram para a Bahia. Todos os armazéns e padarias eram de espanhóis.
- É. Vamos realmente precisar. E onde poderemos vender os papa-fumos?
- Amanhã. Coloquem em sacos de 1 quilo. Ai na frente, na avenida, têm umas mulheres que vendem aos passantes. Elas compram por R$5.00 o pacote e revendem por R$10.00. Não dá para quem quer. O povo sabe que são frescos. Agora, não cozinhem os mariscos esta noite para fazer os pacotes do catado. Deixe os bichinhos como estão. Enquanto eles estiverem fechados, é sinal que estão vivos. Amanhã, cedinho, aí vocês cozinham na própria lata e catam. Façam os pacotes – aqui tem uns fechos – e procurem as mulheres. Procure Benedita. Diga-lhe que vocês são meus amigos. Mas tem outras, se ela não se encontrar.
Conseguiram fazer três pacotes e ainda sobrou alguma coisa para o almoço. Dona Benedita foi logo encontrada. Apuraram R$15.00. Em seguida, passaram no mercadinho de Manolo e compraram pão integral, café, açúcar, leite em pó, feijão, arroz, biscoitos, sal, óleo, vinagre, ovos, verduras e alguns temperos. Estrearam a caderneta. Deu tudo R$42.00. É como se fosse um cartão de crédito. Mas o Manolo não cobrava juros e ainda permitia o pagamento parcelado.
7
À tarde, ainda com a maré vazia nesse turno do dia, voltaram a pescar. Mas, antes de saírem chamaram Dona Zefa pela janela e falaram das dificuldades de carregar uma lata de gás cheia. Era muito pesada. O que fazer?
- É simples. Aguarde-me um minuto. Voltou carregando uma pequena prancha de isopor. – Tome-a. Ao final da pescaria, quando a maré já estiver enchendo e alcançando a sua palafita ou próximo dela, vocês colocam a lata de gás com os mariscos em cima da prancha e navegam com elas até próximo à casa de vocês. Compreenderam, não?
Claro! A senhora é a nossa tábua de salvação.
- Prancha de salvação, retificou Zefa.
Nesse tarde conseguiram encher completamente a lata de gás. Mais lata tivesse. Amanhã, trariam mais uma. Apuraram R$30.00. Com as sobras Angel fez uma frigideira de papa-fumos, receita de Dona Bela. Não ficou igual, mas ficou gostosa.
E assim os dias foram se passando. Quando não havia pescaria à noite, faziam amor como nunca antes tinham feito. Segundo os entendidos, era o efeito do papa-fumo. Afrodisíaco!
Pagaram a conta do mercadinho e adquiriam mais coisas, inclusive cervejas e vinhos brasileiros, mais baratos. Depois do jantar, sentavam-se na varanda e se deliciavam com as bebidas. Dona Bela esfriava-as na sua geladeira. Algumas vezes, a vizinha também participava das noitadas. Trazia sempre uns tiras-gosto. Ficava até tarde conversando. Manolo ficava em casa, dormindo. Pegava cedo no batente. Não podia acompanhar aquela mulher. Era demais. Tinha assunto de toda natureza. Será que? Deixe para lá.
Certa noite, maré cheia, Pierre notou uma movimentação na superfície da água em frente à palafita. Dona Bela estava de junto, ao lado de Angel.
- Que peixe é este Dona Zefa?
- É agulha Pierre É uma delícia. Aqui dão muitas.


Agulhas
- E como se pesca? De anzol?
- Não! De jereré.
- O que é isto?
- É uma rede armada em torno de um arco de arame grosso e uma vara fixada em uma de suas partes. Tenho um lá em casa. Só não tenho um fifó.
Fifó?
É uma luminária sustentada por querosene. Amanhã, comprarei tudo isto e lhe ensinarei a pescar essas agulhas.



No dia seguinte, por volta das 8 horas da noite apareceu Dona Zefa. Vinha também Manolo. Traziam o tal do jereré, a tal da luminária, uma garrafa de querosene, uma churrasqueira portátil, meio saco de carvão e um isopor cheio de cervejas em lata.
- A senhora vai fazer um churrasco ou vai acampar?
- Não, vou fazer uma agulhada. Você vai ver. E vai ser aqui.
- A senhora está me deixando cada vez mais curioso. Agulhada?
- Sim, agulhas assadas na churrasqueira. Primeiro, temos que pescá-las. Pegue um pedaço de pão. Esmigalhe-o e jogue as migalhas ai em frente. É para elas saberem que aqui tem comida. Agora vamos acender o fifó. Segure-o e mantenha o braço estirado em direção ao mar. Elas serão atraídas pela luminosidade. Vou descer a escada, até o penúltimo degrau. E quando elas estiverem bem próximas, eu as pegarei com o jereré num movimento rápido de abafamento.
Assim foi feito e em poucos minutos dezenas de agulhas aproximavam-se de Dona Bela atraídas pela luz. Elas as pegava de três a quatro de cada vez. Depois se afastavam.
- Agora dirija a luz mais para a direita. As agulhas do outro lado estão meio assustadas.
Novas agulhas se aproximaram e novos abafamentos de Dona Zefa. Trocaram de lugar. Dona Bela ficou segurando o fifó e Pierre desceu as escadas. Também conseguiu pegar diversas agulhas. Depois foi a vez de Angéline. Também conseguiu. Seu Manolo já estava preparando a churrasqueira. Trataram as bichinhas com muito limão e as assaram. Pierre jamais tinha comido coisa igual. Angel também se deliciava. Dona Bela ria de satisfeita. Estava na alma dela fazer os outros felizes.
8
Agora, já tinham duas atividades de pesca. A de papa-fumos que continuava e a de agulhas, quando a maré estava cheia à noite. Pierre gostava mais da segunda. Angel também. Não tinha a inconveniência do sol; nem precisavam sair de casa; geralmente comiam algumas após a pescaria. Doda Bela havia deixado com eles a churrasqueira. Vez em quando Pierre e Angel pensavam se não estariam se desviando do assunto da tese. Concluíram que não. O básico estava sendo seguido: como viver numa palafita da Bahia praticamente sem dinheiro. Tinham levado apenas R$10 no bolso. Não tinham ainda decorrido 15 dias, e já estavam com quase R$500 reais em baixo da esteira. 
A venda diária de papa-fumo às mulheres da avenida lhes havia proporcionado chegar a este valor. Estava praticamente provado que era possível viver sim, com pouco dinheiro nos Alagados. Os moluscos davam todas as condições. Mas Pierre tinha planos mais ambiciosos, agora que também tinha as agulhas. A geladeira de Dona Zefa já estava toda tomada por elas. Já há dias só pescava o suficiente para comer. Era necessário comprar urgentemente uma geladeira. Melhor seria um freezer e ainda melhor, um freezer industrial ainda que pequeno. Foi o que fez e mais uma vez, com a ajuda de Dona Bela em seu próprio cartão em 10 prestações mensais de R$210.00. Manolo não gostou, mas quem mandava era a mulher. Teve que se conformar. No dia que o freezer chegou foi uma confusão. Os carregadores se negaram a levar a peça até a palafita de Pierre. Aliás, tecnicamente era impossível. Aquelas passarelas não iam agüentar o peso da peça e de mais quatro homens. Também havia o problema do espaço lateral. Não tinha como passar. Providenciaram uma canoa. Iria pelo mar. Os carregadores nunca tinham passado por aquela situação. Ligaram para a loja. O gerente mandou que tomassem a assinatura de entrega e deixassem a peça na entrada das palafitas. Três conhecidos de Dona Bela, um deles dono da canoa providenciada aproximaram-se do local. A muito custo conseguiram equilibrar a caixa na proa da embarcação. Felizmente era uma canoa grande. Remaram até a palafita de Piere, a cerca de 100 metros do asfalto. E como subir com a mesma? Dona Bela deu a sugestão milagrosa. – Vamos inclinar três varetas do fundo do mar até a palafita. A idéia era um plano inclinado. Foram providenciados 3 troncos de mangue.  Após devidamente amarrado, o freezer foi elevado até o interior do aposento. Pierre, Angéline, D. Zefa  e Manolo em cima puxando e os homens de baixo ajudando com os ombros no processo de subida. Foram gritos de vivas de todos os lados. Os moradores das outras casas vieram assistir a cena, principalmente crianças. Ouviu-se até o pipocar de fogos. Manolo mandou buscar umas garrafas de pinga e alguns refrigerantes. Também foram distribuídas balas e caramelos para as crianças. Uma festa como nunca se viu igual! O primeiro freezer dos Alagados.
Pierre já tinha sido informado por Dona Bela onde poderia vender as suas agulhas: aos barraqueiros de Periperi, Paripe e São Thomé, para tira-gosto. Também poderiam ser vendidas na Penha, no Poço e no Porto da Lenha, no outro lado da enseada. Isso poderia ser feito nos sábados pela manhã e em alguns casos, até nas sextas-feiras à noite. O Manolo emprestaria a Kombi do mercadinho. Piere pagaria a gasolina. O espanhol mais uma vez não gostou, mas quem mandava era a mulher. Foram compradas algumas caixas de isopor para o transporte. As agulhas, após tratadas eram embaladas às dúzias em sacos plásticos e se combinou que o pacote seria vendido a R$10.00 reais, menos de R$1.00 cada agulha. O barraqueiro já vendia o produto por R$12.00 e até R$15.00 meia dúzia, fritas com farofa e salada de tomate. Um ganho praticamente de mais de 100%, mas o fornecimento era precário. Somente tinha agulha quando algum pescador trazia de pescaria de rede. Era muito esporádico. Pierel se comprometia a fornecer semanalmente, já tratadas. O serviço era feito por Angel e Dona Bela durante o dia. Claro que Dona Zefa era sócia meio a meio na comercialização que estava se iniciando.
O princípio da negociação não foi fácil. Pierre encontrou muita resistência por parte dos barraqueiros. Estavam achando caro.
- Mas são tratadas. Facilita o trabalho de vocês. Mesmo com este preço vocês têm um lucro superior a 100%. É muito bom.
- Prefiro comprar na mão do pescador. Eles vendem a R$5.00 ou a R$7.00 o quilo.
- Qual pescador? Poucas vezes eles trazem agulha. Por exemplo, hoje que é sábado, dia de muita gente na praia, você têm agulha?
- Não tenho, mas vendo outras coisas.
- Cerveja, por exemplo. Qual é o lucro da venda de uma cerveja? 30% talvez.
Esse tipo de diálogo de venda ele teve com a maioria dos barraqueiros. Havia uma mentalidade atrasada, retrógrada que aos poucos foi sendo vencida.
9
O negócio prosperava dia a dia. Ainda pescavam papa-fumos, mas o ganho era infinitesimal em relação à venda das agulhas. Eram centenas de dúzias a cada semana. Moradores das palafitas vizinhas agora também pescavam à noite em dias de maré cheia nesse turno. Vendiam a Pierre e à Dona Bela por R$0.30 a unidade. Era melhor negócio do que a venda do papa-fumo. Foram contratadas duas marisqueiras para tratar os peixes. Precisava de mais gente, mas não havia espaço. Pierre alugou a palafita vizinha que se encontrava vazia. Fez uma pequena reforma e passou todo o serviço de tratamento para ela. Comprou mais um freezer. Desta feita, o transporte foi feito com mais eficácia. Haviam aprendido. Tinha que ser pelo mar.
Agora pensava em desenvolver a pesca de sururu. Viajou até Valença e Taperoá para ver como se fazia a pesca desse molusco. Foi na Kombi de Manolo. Trouxe duas cordas com milhares deles. Fora orientado em desmembrar essas cordas em dezenas de outras e distribuí-las pela área a ser desenvolvida. Seria em frente à sua favela e a de Dona Zefa, estendendo-se para fora. Em maré vazia, fincou para mais de 100 paus de mangues e em cada uma das cordas agrupou dezenas de sururus. Eles haveriam de se reproduzir normalmente e isto aconteceu em menos de um mês. As cordas estavam duplicadas e até triplicadas.
Junto com as agulhas, fornecia também agora caldo de sururu em recipientes plásticos de um litro cada um. Foi um sucesso. Era muito bem feito por Dona Bela. Tinha sururu mesmo. Não era igual a esses caldos onde só se encontrava um ou dois sururus, por acaso.
Pierre e Angéline estavam provando que era possível, sim, viver com dignidade e prosperidade nos Alagados. A maioria estava estacionada. Limitara-se à pesca e venda dos papa-fumos. Faltava visão a esse pessoal. O mar é muito rico, tem grande potencial, é só saber explorá-lo. Faltava orientação e exemplo. Veja o caso da pesca das agulhas. Ninguém as pescava e elas sempre estiveram ali. Hoje, a maioria pesca e estão ganhando dinheiro com isto. O mesmo vai acontecer com a fazenda de sururu. Já o vizinho fazia a mesma coisa na extensão de sua palafita. Em pouco tempo serão dezenas.
Estava cumprida uma parte de seu projeto de vida nos Alagados. Pierre o imaginou em pensamento tão logo estudou a área. Facilitou o raciocínio, as pesquisas realizadas em Paris pela internet. Toda a área onde há ou havia manguezal se prestava para esse tipo de pescaria.
Este povo ainda não fez nada disto por falta de instrução. Faltava o básico. Ele estava ensinando a esse pessoal. Aliás, estava mostrando. Cada um que visse e copiasse.
Manguezal? Já era escasso no Lobato, mas ainda tinha alguns nichos. Resolveu colher as sementes das arvoras mais maduras e espalhá-las por entre as palafitas por toda a margem. Eram chamadas de propágulos. Florescia rápido. Em pouco mais de um mês o ambiente em torno já se modificara. Jogou sururu no meio da vegetação, esporadicamente.
- Você é um francês danadinho. Dona Bela estava sentada na varanda de Pierre Em pouco tempo você mudou o panorama disto aqui. Lembra-se do que lhe falei no primeiro dia em que lhe conheci?
- Não. Não me lembro.
-Disse-lhe que você haveria de vencer de outra forma que não somente pescando e vendendo papa-fumo como esta gente faz há anos. Lembro-me muito bem que lhe falei algo mais ou menos assim: “vai chegar um ponto, um determinado momento, que vocês deverão fazer crescer o negócio de pescar papa-fumo. Pescar, vender, comer, pescar, vender, comer... não faz o perfil de vocês nem de ninguém que não tenha crescido aqui”.
- É verdade. Dona Zefa. A senhora além de bonita é vidente. Tudo aconteceu como a senhora previu. Impressionante!
- Mas, teríamos muita coisa ainda a fazer, mas temos que ir embora. Acho que temos material suficiente para a nossa tese. Vimos como se pode viver aqui. Aliás, vive-se em qualquer parte do mundo. O ser humano como que se integra ao meio onde ele se acha, seja de que tipo for. Em nosso caso, parece que sempre vivemos aqui. É uma amálgama misteriosa. Fomos felizes.  Em nenhum momento, reclamamos de nada. A senhora está de prova. Verdade que havia uma finalidade a cumprir, mas até isto, por vezes, foi esquecido.
- Vocês vão deixar saudade.
- Nós também teremos saudades. Toda a comunidade foi muito boa para conosco. Aceitou-nos como se fôssemos um deles. Ninguém reparou a cor da pele ou o sotaque da voz. Preciso retribuir de alguma forma. A senhora nos disse que a Prefeitura vai aterrar isto aqui e vai doar o terreno a cada um dos moradores das palafitas. Tudo bem! E o dinheiro para construir cada casa, como será conseguido?
- Eles continuarão pescando seus papa-fumos e aos poucos irão levantando seus barracos.
- Barracos?
- Que mais poderão fazer?
- E se nós fizéssemos uma doação à Associação dos Moradores das Palafitas do Lobato, será que ajudaria a fazer uns barracos melhores?
- Doação! Como doação? Vocês são tão ricos por acaso? Ao que eu sei vocês são apenas estudantes recém-formados ou formados, lutando por uma carreira. O pouco dinheirinho que possam ter, vocês precisarão para começar a vida profissional.
Pierre olhou para Angéline. Ela concordou com a cabeça. Estava na hora de dizer quem eram.
- Dona Zefa, precisamos dizer a verdade para a senhora. Nossas famílias são muito ricas. Temos vários negócios na França, de indústrias até restaurantes. Temos uma rede de bistrôs espalhada por todo o País e concessão em alguns outros. Não somos apenas estudantes. Somos sociólogos mesmo. Estamos defendendo uma tese de mestrado PHD.
- Meu Deus e eu os tratando como filhos, meus filhos.
- Somos seus filhos mais do que nunca. A senhora foi uma mãe para nós. Sem a senhora a coisa teria sido muito difícil. Não importa quem somos. Somos Pierre e Angel, simplesmente, seus eternos amigos e filhos.
-E agora os perco. Ai eu vou envelhecer mesmo. É o que mais temo. Sou muita vaidosa. Manolo se vira para me agüentar. Vocês compreendem.
- Além de vaidosa, a senhora é um dínamo de competência que está sendo mal aproveitado aqui nos Alagados. A senhora vai conosco para Paris. Precisamos de alguém com sua energia à frente de nossos bistrôs. Vamos introduzir as agulhas no cardápio.
-O que? Não, não posso. E o Manolo?
- Vai também, afinal de contas ele nos emprestou a sua Kombi e também temos super mercados e ele tem alguma experiência. Vai conosco!
Pierre e Angéline ainda passaram uns dias com Mendes e Ana, e aproveitaram para conhecer a cidade. Fora alugada uma escuna e conheceram Mar Grande e Ilha de Maré. Almoçaram nesta última ilha. Deliciaram-se com as moquecas de caçonete e peguari.  No domingo seguinte viajaram para a França.

A palafita foi devolvida ao seu dono e todas as coisas da casa foram dadas a Dona Zefa, inclusive os freezers que ela logo vendeu, bem como estava vendendo o que valia alguma coisa da sua própria residência. Manolo venderia o mercadinho, mas aí veio o impasse. Ele não queria vendê-lo. Alegava que trabalhou muitos anos para chegar ao ponto que chegou. Também não queria voltar para a Europa. Não fazia sentido

- E eu Manolo? E você? Como ficamos?

- Zefa, em verdade não somos casados de verdade. Essa é uma história que você criou, aliás, muito bem criada. Todo o mundo pensa que somos casados. Tudo bem! Você foi sempre uma grande companheira. Não tenho o direito de impedir que você siga outros caminhos. Você merece. É uma grande oportunidade. Também não é justo que eu abandone meus negócios para uma aventura.

- Aventura?!

- Não deixa de ser uma aventura. A terra é estranha para você. A língua é diferente. Você não é mais menina. Será que esses moços estão falando a verdade? Às vezes a realidade é outra.

Zefa como que despertou de um sonho. É preciso pensar um pouco. Acreditou em tudo que eles falaram. Sociólogos. Tese de mestrado. Rede de restaurantes e lanchonetes. Indústrias? É muita coisa. Precisava pensar. Precisava de uma prova. Dentro de um mês estaria viajando para a França. Não tinha muito tempo para averiguar. Mas como? Procuraria o tal do professor que mora em Salvador. Mas ele deve estar compartilhado com o casal. Teve uma ideia. Não ficava muito bem, mas era a única forma de se safar de uma armadilha. Resolveu telefonar para Pierre. Pediria que lhe fosse dada uma passagem de ida e volta caso não se adaptasse. Foi um conselho de Manolo que resolveu não ir. Ele lhe alertou das dificuldades da língua e outras coisas. Talvez eu não me adaptasse. Tinha alguma razão. Ligou para Pierre e foi mais ou menos isso que Zefa falou.

- Você tem toda razão. O convite foi muito extemporâneo. Se você não gostar, você volta na hora que quiser. Pelo menos você conhecerá minha terra, minha família. Para sua maior tranquilidade, além da passagem ida e volta, estarei depositando na sua conta dez mil reias. Estou recebendo uma ligação internacional noutro telefone e vou passar a ligação para Angel. Por favor, informe-a como você prefere receber este dinheiro.

- Zefa, estava ouvindo a conversa e acho melhor deixarmos o dinheiro com nosso amigo de Salvador, o Mendes. Ele o levará até você. Está bem?

- Está bem, filha. Boa viagem.

- Esperamos que você vá.

Zefa chorava copiosamente. Notou que Pierre não gostou. Por isso ele passou o telefone para a esposa. Mas tinha que fazer. Um dia lhe pediria desculpas.

E em poucos dias, uma quinta-feira, Mendes passou no Lobato e entregou a Zefa as passagens de dia e volta Salvador-Paris-Salvador e a importância de dez mil reais.
.
Encerrada esse detalhe familiar, começou a visitar todos as amigas dos Alagados, marisqueiras como ela. A maior parte ainda em atividade. Ela parou por causa de Manolo. Dava-lhe o sustento, a bem da verdade. Foi uma dádiva de Deus, era preciso reconhecer. Seria eternamente grato àquele homem. Era uma pena que não quisesse viajar com ela. Tinha sua razão. Lutou muito. Quando veio da Espanha trabalhou em dois armazéns e nos dois morava nos fundos. Trabalhava de tamanco. Poupou durante quase cinco anos até que comprou o mercadinho aqui dos Alagados. Ele tem toda a razão de não viajar com ela. Era mais cauteloso. Ela não; era impetuosa. Não se sentia desprezada. Sabia que como mulher e companheira fez sua parte, mas não podia perder a oportunidade que estava surgindo. Poderia dar certo.
Afinal, chegou o grande dia. Zefa olhou de cima para baixo  o interior de sua palafita. Manolo lhe deu o último abraço. Tinha lágrimas nos olhos. – Seja feliz! Não pense em mim. Eu bem que poderia ter ido com você, mas, infelizmente, há um passado que não posso desprezar. Não posso arriscar nada na idade que estou e não tenho ninguém. Só tinha você.
- Querido, ainda posso desistir. Ainda estou aqui. É só cancelar a passagem.
- Não. Já tenho uma certa idade e muito pouco a oferecer em contra partida. Você tem toda uma vida pela frente. Boa viagem. Que Nossa Senhora dos Alagados lhe proteja.
No asfalto. Mendes já esperava pela amiga dos seus amigos. Estava-a levando para ao aeroporto à pedido de Pierre.
O avião posou no aeroporto Charles De Gaulle às 19 horas. Foram 10 horas de viagem. Esperava-na  Pierre e Angéline. Zefa morria de frio. Estava com um vestido de seda, estampado, justíssimo, menos pelo seu feitio e mais pelas suas formas. Todo mundo olhava. Foi necessário Angéline se desfazer de seu casaco  para proteger a amiga.
- Cubra-se com meu casaco.
Pierre melhorou ainda mais a situação, colocando o seu cachico em torno do pescoço da amiga. Deu-lhe um grande abraço. – Seja bem vinda à nossa terra como fui Benvindo na sua.  
- Meus queridos meninos. Que prazer imenso estou tendo em revê-los.
Já acomodada na Mercedes de Pierre devidamente aquecida, Zefa se refez. Devolveu o casaco à Angéline e o cachecol à Pierre. Parecia que queria mostrar seu vestido, feito especialmente para aquela viagem. 
- Como estou Angel?
- Sempre muito bonita. Como foi a viagem?
- Foi dura. 10 horas sentada. Não fosse às idas e vindas ao sanitário, seria ainda pior. Melhorou um pouco quando serviram o almoço. Pouca comida, mas excelente.  Nota 10. Vocês comem assim tão pouco?
- É.  A comida francesa talvez tenha este defeito. Servem pequenas porções. Para quem não está acostumado, estranha. Deve ter sido o caso da senhora.
- Verdade! Vocês sabem muito bem como nós comemos. Lembra-se daquela feijoada do dia que vocês chegaram ao Lobato?
- Como é que se pode esquecer, dona Zefa.
- Interessante, e vocês não estranharam. Comeram tanto. O inverso não foi verdadeiro?
 - Não é que verdade amiga? Comíamos tanto que à tarde só fazíamos dormir e não engordei.
- Vocês não engordaram porquê mariscavam muito. Andar naquela lama não é fácil.
Pierre ao lado, acompanhava a conversa das duas mulheres. Havia um pouco de neblina e ele dirigia com cuidado.
- Meu Deus, a Torre Eiffel! Que beleza Angéline, exclamava Bela.
- E aqui ao lado o Sena. Este rio corta quase toda Paris.
- È demais. Estou super agradecida pela gentileza de vocês.
- Agradecidos estamos nós, dona Bela. Nossa tese mereceu louvores. Está sendo divulgada na internet e estamos dando palestra em muitos lugares. Amanhã, por exemplo, temos uma em uma cidade aqui perto. A cada dia as nossas palestras ficam cada vez mais caras.
- Caras?
- Sim, dona Bela. O valor é cobrado pela importância do local onde são proferidas e o número de pessoas que irão assisti-la.
- Vocês cobram quanto?
- Em moeda brasileira, algo em torno de duzentos mil reais. Cem para mim e cem para Pierre. Fazemos em dois blocos. Tem vídeos, fotos, aparece a senhora numa delas.
- Eu apareço?!
- Sim e sempre muito bonita. A senhora é muito bonita, tanto por fora como por dentro. Nunca vimos uma pessoa como a senhora. Se fosse ao contrário, isto é, se um casal de brasileiro viesse fazer um trabalho parecido com o nosso numa favela de Paris, não sei o que seria?
- Belle, era Pierre se manifestando. Estava muito calado.
- Pierre, meu nome é Bela e não Belle. Prefiro até que você  me chame Bela de Jesus.
- Não se esqueça que a senhora está na França e a pronuncia de seu nome aqui é Belle.
- Tudo bem. Vamos lá.  
- Verdade! Por sinal, que tal falarmos um pouco em francês? Quero ver como foi o resultado de seu curso intensivo.
- Coimment ça va, Belle?
- Plus ou moins.
- Et tiu? Quelles sont lês nouvilles?
- Aucune.
- À demain.
- Sensacional Bela. A senhora é muito inteligente. Gostei de sua pronuncia. Parece uma francesa.
E após mais alguns quarteirões, o carro entrou numa rua toda arborizada e estacionou quase ao fim da mesma.

- Chegamos! Fica aqui o apartamento. Bâtiment Champs Élysées. Oh! Desculpe. Edifício Campos Elísios. 10º andar. Apartamento 1004. É aqui que você vai morar.
- Mas pensei que ia morar com vocês numa casa de fazenda, num sitio, algo assim?
- Como Bela, não entendi?
- Pensei!
O apartamento era lindo. Dois quartos e uma sala, banheiro e cozinha. Ainda tinha uma varanda, Estava lindamente mobiliado.
- Angel, agradeço de coração. Foi você quem escolheu os móveis, não foi?
- Foi.
- Me dá um abraço, filha minha. Considero você a filha que eu nunca tive.
- Pois bem. A dispensa está abastecida; a geladeira também. Agora só vou aparecer daqui a dois dias. Vou deixá-la à vontade amanhã a fim de que conheça o bairro. Não se afaste muito. Vá com calma. Tem super mercado perto, padaria, farmácia, tudo enfim, sem precisar ir muito longe. Aqui estão meus telefones e os  de Pierre. Boa noite.
                                                                        
12
No dia seguinte, Bela andou pelo bairro. Foi à farmácia, ao super mercado e a um shopping ali perto. Comprou dois casacos. Além de estarem em promoção, efetivamente precisava dos mesmos.  Comprou um jornal. Precisava se exercitar. Leu com facilidade a maioria das notícias. Li-as em voz alta, andando pelo apartamento. 
No dia seguinte, Pierre pegou-a às 9 horas da manhã. Havia ligado antes, avisando-a. Sempre muito educado.
- Descansou bem? Conheceu o bairro? Gostou?
À tríplice pergunta, Bela respondeu com um “três bien” Pierre, como vai Angéline? Por que ela não veio?
- Ficou em casa. Agora nós vamos à sede das empresas de meu pai. Vou lhe apresentar. Como lhe falei no Brasil, a família tem uma série de negócios, desde super mercados até uma rede de bristos. 
- O que é um Bistrô, Pierre.
- Trata-se de um café ou um pequeno restaurante ou, simplesmente um lugar para se desfrutar um copo de vinho com alguns amigos. Ele tem também muitos apartamentos em Paris. O que vocês estão, por exemplo, é dele.
- Deve ser muito rico, não?
- Mais ou menos, chegamos. Aqui é a empresa. Estamos nos arredores de Paris.
- Era um edifício de cinco andares. Acima da porta a expressão - “SIMON&;CIA.
A sala do pai de Pierre ficava no último andar. Na porta uma placa – PRESIDENTE.  Entraram e um senhor alto, aparentando uns 55 anos levantou-se da cadeira onde estava.
- Só assim você aparece e vem escoltado de gente boa e bonita. É sua amiga do Brasil? Que bom!
-  Esta é Dona Bela de Jesus. 
- Queira sentar-se. Primeiramente, quero agradecer-lhe de coração o quanto fez pelo meu filho e a Angel em sua terra. Não fossem a senhora e eles estariam perdidos. Foi ele mesmo quem me disse.
- Não fizemos nada, doutor.....
- Paul Simon.
- Fez, sim. Fosse ao contrário, aqui na França e estariam perdidos. Continuando, ele me pediu uma colocação de sua pessoa em uma de nossas empresas. Estamos sempre precisando. Tem muita coisa. Estou sabendo que a senhora, por exemplo, é muito “lider” e estamos aflitos por lideres.
- Líder?
- Sim Dona Belle. Pessoas que saibam liderar outras tantas. Há uma deficiência global e
quando aparece um, todo mundo quer, por isto, são caríssimos.  

- Mas não tenho experiência alguma sobre estes serviços. Só aprendi a catar mariscos.

- Isto é que é serviço. Segundo Pierre me contou, precisa de disciplina, força de vontade, saúde, determinação. É isto que estamos procurando, aliás, todo mundo está procurando e não está achando. Ninguém quer mais nada! Os sindicatos estão em cima da gente, tentando reduzir as horas de trabalho e aumentar os salários, mesmo com a redução. Não tem empresa que agüente. Naturalmente que a senhora fará um estágio de três a seis meses em nossas empresas, até uma definição. Compreendido? Vou encaminhá-la ao nosso setor de Recursos Humanos para as primeiras providências, mas a senhora já é um dos nossos. Em seguida, levantou-se, estendendo à mão a Dona Bela.  Beijou o filho. - Tenho uma reunião para daqui a 5 minutos. Passem bem.
Bela dizia consigo própria – o que era aquilo? Jamais vira uma pessoa assim. Que objetividade? Mas, é muito bonito. Que pinta de homem? Que elegância?
Pierre levou-a ao 3º andar onde ficava o tal do departamento  de RH e pediu que lhe ligasse perto do fim da tarde. Ele a pegaria de volta. Deveria almoçar na empresa.  
                                                
                                                               13                            
                                          E, efetivamente, Pierre a pegou no horário marcado, 5 horas. – Como foi no RH?

- Fui entrevistada pelo seu diretor e   depois fiz diversos exames médicos e psicotestes. Em seguida, fui encaminhada ao gerente de Bistrôs e Restaurantes. Chama-se Edmond. Quando ele soube que eu pescava mariscos, perguntou há quantos metros eu mergulhava. Disse-lhe que em torno de 10 centímetros de lama. Riu à vontade quando depois, lhe expliquei como era a pesca do papa-fumo. Depois fui conhecer o gerente de Supermercados. Depois me levaram para conhecer o gerente de finanças, de marketing, de tudo. Levei a tarde inteira nessa peregrinação. Ah! Já ia me esquecendo, almocei bem e a comida basicamente, não era à francesa. Era uma comida normal. Interessante como ela muda de feição em outros lugares? Amanhã começarei a estagiar em bistrôs e restaurantes Já tenho os endereços.

- Então, amanhã você começa uma nova vida à francesa, não é verdade? Chegamos ao seu apartamento.

- É, estou pronta. Lembranças à Angéline. E Pierre se afastou com seu carro.

No dia seguinte, Bela acordou antes das seis. Às oito horas devia chegar aos respectivos locais de trabalho, ou melhor, de estágio. Fora explicado como alcançar cada um deles. O primeiro bistrô a ser visitado chamava-se justamente Bistrô Paris. O nome da cidade. Era uma mulher a gerente. Aline era seu nome. Apresentou-se. Ela já sabia do que se tratava. Tinham ligado para ela.

- É um prazer conhecê-la “mademoiselle Belle”.

Bela chegou a tomar um susto. Estava sendo chamada de “mademoiselle”. Sensacional! Há pouco tempo atrás era a Bela dos Alagados, do Lobato e agora era “mademoiselle”. Tinha que fazer certa pose, para não decepcionar àquela menina. Tinha, no máximo, 25 anos e era “bonitinha”. Ficaria melhor se tirasse aqueles horríveis óculos de tartaruga e fosse um pouquinho mais gorda. Era magra demais. Se morasse no Brasil, especialmente na Bahia, nunca casaria, mas na França, em Paris era casada. A aliança na mão esquerda indicava o feito.

- Vamos lá. Vamos começar pela cozinha. A alma de um pequeno restaurante como é o nosso.

- Mas ele não se chama Bistrô Paris. Não é um bistrô?

- Também é. Em verdade, no principio era apenas um bistrô – só servia café e vinho com alguns tiras gosto, especialmente de queijo.  Depois, sentiu-se a necessidade de ampliar suas funções. Começou a servir refeições quase normais. Hoje é mais um restaurante. Não faz muito sucesso no bairro porque temos um grande concorrente na área, o Benoit, mas vai se levando. A nossa empresa é muito forte. Dá o necessário equilíbrio. Muitas vezes, temos que recorrer a ela para pagar os funcionários.

- Ah! Sei! Bela anotou em sua agenda. ” Não se sustenta por si só”.

Na cozinha o pessoal ainda estava chegando. Os que já estavam lá começaram a lavar pratos deixados do dia anterior e panelas usadas. “Este serviço poderia ter sido feito no dia anterior”.

- Como o pessoal ainda está chegando, posso conhecer o “restaurante” propriamente dito?

- Claro. Vamos lá.

Ainda estava todo desarrumado. Tinha até cadeiras em cima de mesas. O chão sujo. Guardanapos usados por todos os lados. Pratos ainda por tirar. Uma bagunça, mas como os fregueses só começariam a chegar depois das 11 horas, poderia tudo aquilo ter uma explicação. Mas não tinha, haveria de concluir Bela. Às 9.30 chegou a moça da limpeza. Foi mudar a roupa e só começou a arrumar o salão quase às dez. Perto das 11 ainda estava no chão passando um pano com detergente. Já tinha cliente chegando. E Bela anotando. Os garçons em número de dois, ainda estavam se arrumando. O “chef” já tinha chegado. Chamava-se Goulard. Um homem bastante gordo. Precisava emagrecer. Só fazia suar naquele ambiente abafado, relativamente quente, apesar dos exaustores. Quando começaram a cozinhar, primeiro o arroz, Bela estava de junto e o Goulard não. Não rechearam o bendito. Colocaram-no direto na panela, uma das maiores, e botaram água. Segundo sabia e ela conhecia bem o ramo como boa cozinheira que sempre foi, era necessário rechear o arroz em meio a, pelo menos, alguma cebola, a fim de lhe dar um gostinho mais apreciável, senão ficava muito sem graça. Talvez fosse costume cozinhá-lo assim, aqui na França, mas anotou o detalhe. Depois acompanhou o atendimento dos pedidos e o serviço de um modo geral. A postura dos garçons. Não gostou muito. Às 13 horas, Aline convidou-a para almoçar. Ainda tinha cliente almoçando. Bela alegou indisposição. Precisava andar um pouco. Saiu e procurou saber onde era o Benoit, o bistrô adversário. Era na esquina da rua. Estava cheio, bem cheio. Tinha gente na fila. Entrou e aguardou a sua vez. Almoçou bem. Um filé com arroz e batata. Estava uma delicia principalmente o arroz. Parecia o seu. Voltou ao Bistrô Paris por volta das 14 horas. Já não tinha mais nenhum cliente.  Sentou-se numa das mesas e explicou ao garçom que havia se perdido na hora e que ele providenciasse justamente um filé com arroz e batata. Demorou um bocado, mas o prato chegou. Provou do arroz. Não conseguiu comê-lo. Era muito ruim. Anotou na agenda – arroz ruim da peste. O prato retornou sem ser comido. E não era mesmo para comer. Já tinha almoçado no concorrente. Deu uma olhada no cardápio. Anotou os preços. O mesmo tinha feito no Benoit e às 16 horas Bela se despediu de Aline. Pegou o metrô e retornou ao seu apartamento.

- Sentou-se junto à mesa de jantar e no próprio caderno que havia feito suas anotações fez um relato mais explícito do que tinha visto e ouvido. Uma espécie de relatório. Vez em quando parava para pensar. Não estaria sendo rigorosa demais. Afinal de contas, tinha sido designada para estagiar e estava dando uma de supervisora. Mas era necessário. Não podia concordar com muita coisa que viu. Será que era isto que esperavam dela. Era uma grande empresa. Devia ter gente especializada em análise de desempenho. Aquele bistrô estava dando prejuízo. A própria gerente disse-lhe que era comum pedir à Central reforço de caixa. Tinha que fechar ou vê o que estava acontecendo. O concorrente na mesma praça estava dando um banho de frequência e, certamente, de lucro. Ou será que ninguém tinha percebido isto. Que não havia ninguém fiscalizando. Era um turbilhão de coisas erradas no seu modo de ver. Parou para descansar. Meu Deus me ajude. Indique-me o caminho na condução dessa coisa. Pelo visto, amanhã será pior. Já estava sabendo no que estava pisando e as observações serão mais rigorosas. Tomara que o bistrô de amanhã seja ótimo. Rezou uma Ave-Maria.

Afastou a cadeira e resolveu tomar um banho. Dizem que o europeu, especialmente os franceses, não gostam de tomar banho. Por isso são os reis do perfume. Uma forma de compensar as coisas. Mas ela não era francesa. Apenas estava em París. Abriu a ducha de água morna e começou a se banhar. Era sempre uma hora de avaliação do seu corpo. Não tinha manchas, celulites, nada. Sabia que tinha um belo corpo. Não foi bem aproveitado por Manolo. Chegava do trabalho sempre cansado. Virava para seu lado e dormia o sono dos justos. E agora? Sozinha? Vai ser pior. Procurar alguém naquela cidade desconhecida? Nem pensar. Tinha que ser no trabalho. Em algum bistrô. Deve ter gerentes bonitos. A empresa é muito grande. O próprio presidente pode ser uma opção. Cruz Credo. O homem deve ser casado. É melhor eu dormir. Estou passando dos limites. Não vim aqui para isto.
     

14
Acordou bastante cedo. Não eram nem 6 horas. Ainda estava escuro. Em Salvador o galo já teria cantado umas dez vezes. Pensou nos acontecimentos do dia anterior. O  relatório no caderno de anotações. Arrancaria as páginas correspondentes e as guardaria na gaveta. Precisava de clips ou um grampeador. Traria da rua. Consultou a agenda. Marcava uma revisita ao mesmo bistrô. Dois dias para cada estabelecimento. Teve uma ideia. Porque não convidar Pierre para almoçar lá? Gostaria que ele mesmo visse o que ela viu.  Às 8 horas ligou para o seu celular.
- Estou lhe convidando para almoçarmos no Bistrô onde estou estagiando. Pode ser?
- Claro! Bela. Só assim eu me livro do restaurante da empresa. Será um prazer. Podemos marcar para 12.30. Está bom para você?
-Ótimo, até mais então.
No horário marcado, Pierre estava estacionando seu carro na vaga destinada a diretores da empresa. Bela esperava-o na porta. Ele já tinha avisado pelo celular que estava chegando.  Abraçaram-se. – Você está ótima. De saia, blusa e casaquinho. Parece uma executiva. Aliás, você já é uma executiva.
- Que nada filho.  Faço o que posso. À noite você precisa ver como eu mudo. Sou uma vedete solta em Paris. Como vai Angel. Ela poderia ter vindo.
- Não era possível. Moro longe e perderia praticamente meia manhã para ir buscá-la, etc. etc.  Vamos almoçar dignamente. Algo especial para se escolher?
- Não! Ainda não conheço bem o cardápio. Façamos de conta que o bistrô não é seu e eu não estou estagiando nele.  Estamos vindo pela primeira vez.
- Que ótimo!
A gerente do Bistrô não conhecia Pierre. Não sabia que ele era o filho do Presidente da empresa.
- Vou lhe apresentar à gerente como se você fosse um amigo, ok?
- Genial. Interessante. Assim fico mais à vontade.
Na sesta feira o Bistrô Paris tinha como melhor opção peixes e mariscos. Bela pediu um ensopado de camarão e Pierre quis um Badejo na brasa. Para beber uma garrafa de vinho branco.
- Não costumo beber em dias de trabalho, mas hoje terei que fazer uma exceção. Estou almoçando com uma grande amiga.
- E eu com um filho, grande amigo meu.
Não demorou muito e os pratos chegaram à mesa.
- Como eles são rápidos!
- É. Como hoje é o dia desse tipo de comida, praticamente eles já os tem quase prontos. Bom apetite.
- Bom apetite.
-Bom apetite.
De principio Bela estranhou o tamanho dos camarões. Muito pequenos. Não era para aquele tipo de prato. Em seguida, foi a vez de Pierre repentinamente chamar o garçom.
- Este peixe está cru. Como é que pode. Bela olhou a carne rosada do peixe sem ainda estar cozida.
- Desculpe senhor, vou ver o que aconteceu e retirou o prato da frente de Pierre.
- Como está seu camarão? Parecem pequenos.  O que está acontecendo? Levantou-se e se dirigiu até onde estava a gerente. Bela ficou onde estava. Apenas olhava os dois discutindo. Parece que Pierre se identificou. A gerente chorava. Estava sendo despedida.
- Vamos almoçar em outro lugar. Que absurdo! Atravessaram a praça e foram almoçar no restaurante do concorrente.
- Desculpe Bela. Logo hoje e num dos bistrôs mais tradicionais da rede. Após o almoço vamos para a empresa.
Enquanto Pierre subia para falar com o pai, Bela se dirigiu até a sala do Gerente de Bistrôs e pediu que ele verificasse a compra de camarão esta semana do Bistrô Paris.
- Aqui está. Camarões pistola médio. R$50,00  o quilo. 10 quilos.
- Por obséquio, verifique o preço do camarão miúdo. Eles compram para recheio de empadas.
- R$15.00
-Quando quilos foram comprados esta semana?
100 quilos.
-Obrigado. O senhor poderia tirar uma xérox dessa página?
- Pois não. Aqui está.
No dia seguinte, Bela foi conhecer outro estabelecimento do grupo. Desta feita um restaurante. Chamava-se SIMON’S.  Ficava mais no centro da cidade. Este então chegou ao limite do fracasso. Quase não tinha cliente. Só uns gatos pingados. Não compensava nem em abri-lo, segundo sua modesta opinião.
Após cinco dias de estágio, numa sesta feira, Bela foi até a empresa para receber nova lista de visitas.   Seria o trabalho da semana seguinte.
Na mesa que lhe destinaram tinha um recado de Pierre. Ligue para meu celular.
Imediatamente Bela ligou.
- Amiga. Amanhã é sábado; depois domingo. Também são dias de estágio, mas um estágio diferente. Será no meu sítio. Não estou lhe convidando. Estou ordenando. Passo no seu apartamento amanhã às 7 horas. Fica perto aqui de Paris. Leve roupa para banho e aquele vestido estampado para a festa à noite. A senhora deve ter trazido.
- Só tenho ele, filho. Ainda não deu para comprar outro. Comprei apenas dois casacos por causa do frio.

15
E no dia seguinte, bem na hora marcada, Pierre chegava numa Mercedes conversível. Angéline estava ao seu lado. Parecia mais bonita. As feições tranqüilas, absolutamente descontraídas, diferentemente de como estava no Brasil. Parecia sempre preocupada. A testa chegava a se franzir. Pierre como sempre muito bonito, simpaticíssimo. Os dois saíram do carro para abraçar a amiga.
- Temos um pequeno sítio em Ville de Houilles. É lá que descansamos todos os fins de semana. Naturalmente que ele está a sua disposição para quando quiser, independente de qualquer formalidade.  Não tem mais essa de convite. Se, por acaso, nós não formos por qualquer razão, uma viagem, por exemplo, poderá ir sem nós. Tem um caseiro e sua mulher. Temos alguns amigos que independente de nossa presença, sempre vão. É só ligar para os caseiros, afim de que eles possam preparar as refeições, estas coisas. A viagem de trem até lá dura apenas 30 minutos. O trem é maravilhoso. Corta regiões muito bonitas. Às vezes, vamos de trem para rever estas belezas e voltamos de carro que um motorista coloca lá de véspera.

Chegaram em 20 minutos. O sítio era maravilhoso. Piscina, campo de golfe, salão de jogos, salão de ginástica, sauna, cineminha para oito pessoas bem acomodadas, Quatro suítes, duas grandes salas, amplas varandas, um luxo. Em torno uma paisagem maravilhosa. Um pequeno riacho passando num dos seus lados e até cachoeiras. Os quartos eram amplos e confortáveis. Banheiro sensacional. Televisão e computador. Foram informados que havia mais um casal convidado. O rapaz era colega de Pierre e com ele jogava golfe.

Bela ficou em dúvida qual biquíni deveria usar, se o branco ou o estampado. Preferiu o branco; no dia seguinte usaria o outro.

Os amigos de Pierre já estavam na piscina e mais outro casal. Foram apresentados. Armand e Adrienne. – Franz e Gal.  Muito prazer. Bela de Jesus. Quando Bela tirou a bermuda e a blusa e se mostrou de biquíni, as mulheres entreolharam-se. Os homens deram um leve sorriso. Não tinham outra forma de agir.

- Bela que corpo é este?! Meu Deus? Era Angéline falando, admirada. Você nunca se mostrou lá no Brasil.

- Vocês nunca me convidaram para mariscar. Poderia ter colocado este biquíni ou outro que tenho, todo colorido. Vou botar amanhã. 

Os dois rapazes disfarçadamente olhavam para o monumento que era aquela mulata. As mulheres beliscaram-nos de brincadeira. Bela não era bem uma mulata. Era mais para morena, mas os europeus não percebiam essa diferença.

Bela era uma boa nadadora. Pegou diversas corridas com Pierre e Armand. Ganhou todas. As mulheres riram e torciam por seus maridos, mas sempre eles perdiam.

- Então a senhora vai morar aqui na França? Indagava Armand.

-É, parece que sim, graças a esses dois. Fizemos uma amizade muito forte que nem a força de um marisco quando fecha suas conchas. Parece que eles não podiam ficar sem mim e eu sem eles. Só Deus sabe quando Ele colocou esses dois meninos em minha frente. São os filhos que eu nunca tive e olha lá que foi uma amizade cimentada em poucos meses. Agora que estou aqui, vai se “concretizar” por toda a vida. Não tenho a menor dúvida e vocês como se conheceram. Bela jogava a bola para o outro lado.

- Adrienne e eu éramos colegas na faculdade, a mesma de Pierre e Angéline. São histórias mais ou menos parecidas. Apaixonamos um pelo outro e nos casamos, primeiro do que Pierre e Angéline, que foram nossos padrinhos de casamento. E a senhora o que fazia antes de vir para cá?

- Quando Pierre e Angel chegaram no “bairro” que eu morava, não fazia nada. Só Manolo, meu marido, trabalhava. Ele é dono de um mercadinho. Antes, contudo, eu era marisqueira, junto com minha irmã. Sustentávamos a casa com essa atividade. Minha mãe e meu pai já não tinham mais força para esse trabalho.

- Marisqueira?! De marisco, ostras, essas coisas?

Quase que o rapaz perguntava se eu mergulhava para pegar esses mariscos que nem outra vez.

-Sim. De um marisco chamado papa-fumo. Dá muito em Salvador. Morávamos numa palafita em cima do mar. Quando a maré vazava, descampava uma praia de lama onde os mariscos viviam enterrados. Era só catá-los. Pierre e Angéline se tornaram exímios marisqueiros.

- Adoro mariscos, como a senhora os prepara? Perguntou a esposa de Armand.

- Cozinho com água e sal e coloco uma colher de sopa de azeite de oliva para dar gosto. Quando os mariscos se abrem, é sinal que estão no ponto. Ai, você tira os bichinhos das conchas e acrescenta muita cebola, tomate, pimentão e azeite de dendê. Em seguida, retorna ao fogo para pegar gosto. Deixo ferver.

- Bela danada. Você nunca me disse que botava uma colher de sopa de azeite de oliva na hora de cozinhar os papa-fumos!

- Será que eu não lhe ensinei Angel? Não é possível. Devo ter me esquecido. O mesmo eu faço quando cozinho caranguejo ou siri.

- Nunca comi caranguejo. Deve ser uma delícia!

- É muito bom, mas precisa de paciência para comê-lo. Você tem que parti-lo, perna por perna e em seguida você come as partes que ficam no interior de sua carcaça.

- Parti-lo nos dentes?

- Não, amiga. Você precisa de um pequeno martelo, um pedaço de madeira pesada que vá quebrando o bichinho numa tábua ou num bloco de mármore. O que você consegue comer é quase nada em relação às cascas que ficaram. Lembra muito o conceito da comida de vocês franceses – pouca coisa.

- Não gostou de nossa comida?

- Não é que eu não goste da comida de vocês. Ela é muita “florida”. Parece haver mais preocupação com a beleza do prato do que com seu gosto. De relação à quantidade, nem se fala.

- Mas muita quantidade a fará engordar.

- Eu sou gorda?

- Não, pelo amor de Deus. Nunca vi mulher tão bem feita na minha vida.  As brasileiras são sempre assim, cheinhas?

- Nem todas, mas o padrão é mais ou menos esse que vocês estão vendo e eu já tenho certa idade, mas nenhuma celulite e aí estendeu uma das pernas que causou desvio de olhares masculinos.

- Bela. Tenho um desafio para lhe fazer.

- Faça Pierre querido.

- Daqui a 15 dias vou trazer alguns quilos de papa-fumo da Bahia, azeite de dendê e camarão seco. Hoje as coisas estão bem mais fáceis. O mundo está totalmente globalizado, inclusive na culinária. Meu pai certamente tem meios rápidos de importar esses produtos para uma de suas lojas. E você nos fará uma moqueca com eles.

- Farei. Mas já que você vai providenciar isto na Bahia, poderá trazer também siri mole e agulhas brancas. Farei uma moqueca com aquele e fritarei as agulhas como tira-gosto. Não se esqueça do camarão seco e castanhas de caju. Não deixe de convidar seu pai- Vou convidá-lo, bem como outros amigos. Temos muitos, a maioria ex-colegas de faculdade. Vou pedir também ao meu pai para providenciar dois ou três cozinheiros para lhe ajudar. Você só os guiará a fim de não se cansar.

- Está bem, Pierre. Vai ser uma grande festa gastronômica. Isto na terra da gastronomia chega ser sensacional. Terei que me esforçar muito.

Voltaram a mergulhar na piscina. Angéline tinha um corpo lindo. Sua amiga também, no mesmo estilo. Depois foram para o salão de jogos – as mulheres jogaram tênis de mesa e os homens bilhar. Em seguida foi servido o almoço e Bela reparou que a comida caseira dos franceses não era a mesma coisa daquela servida em restaurantes de luxo, super sofisticadas. Vinham as porções de arroz, purê de batata e carnes para a mesa – no caso em maravilhosas tigelas- e cada qual se servia. Só a sobremesa veio em porções para cada um. Maravilhosa!

Quando terminaram de almoçar já eram quase cinco horas da tarde. Estavam todos exaustos. Pierre se aproximou de Bela e lhe disse que a noite faria o jantar na piscina às 22 horas e que se ela colocasse aquele vestido longo do seu aniversário nas palafitas. Dormiu até às 21 horas e  pouco antes das 10 horas desceu e se dirigiu  para a piscina que ficava localizada na lateral contrária ao quarto que estava ocupando. No entanto estava tudo às escuras. Estranhou e de repente as luzes se acenderam e Zefa teve uma grande surpresa. O local estava repleto de gente. Os homens de paletó e muitos até de gravata e as mulheres de vestido longo. Mesas ao redor de toda a piscina com belíssimos arranjos de flores em cada uma delas. Ao centro da piscina uma belíssima peça representando a concha de um molusco, rodeado de flores. Parou extasiada. Aí um conjunto musical colocado na parte mais posterior da piscina começou a tocar a música de Herbet Vianna do Paralamas do Sucesso, Alagados:
Todo dia o sol da manhã


Vem e lhes desafia

Traz do sonho pro mundo

Quem já não o queria

Palafitas, trapiches, farrapos

Filhos da mesma agonia

E a cidade que tem braços abertos

Num cartão postal

Com os punhos fechados na vida real

Lhe nega oportunidades 

Mostra a face dura do mal



Alagados, Trenchtown, Favela da Maré

A esperança não vem do mar

Vem das antenas de TV

A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê
A arte de viver da fé

Quando terminaram de almoçar já eram quase cinco horas da tarde. Estavam todos exaustos. Pierre se aproximou de Bela e lhe disse que a noite faria o jantar na piscina às 22 horas e que se ela colocasse aquele vestido longo do seu aniversário nas palafitas. Dormiu até às 21 horas e  pouco antes das 10 horas desceu e se dirigiu  para a piscina que ficava localizada na lateral contrária ao quarto que estava ocupando. No entanto estava tudo às escuras. Estranhou e de repente as luzes se acenderam e Zefa teve uma grande surpresa. O local estava repleto de gente. Os homens de paletó e muitos até de gravata e as mulheres de vestido longo. Mesas ao redor de toda a piscina com belíssimos arranjos de flores em cada uma delas. Ao centro da piscina uma belíssima peça representando a concha de um molusco, rodeado de flores. Parou extasiada. Aí um conjunto musical colocado na parte mais posterior da piscina começou a tocar a música de Herbet Vianna do Paralamas do Sucesso, Alagados:
Enquanto Pierre falava, Bela apertava os olhos para não chorar e não sujar a sua maquiagem. Ela não fez nada, assim achava. Ela era assim mesmo. Não tinha jeito. Fora criada naquele espaço de lama que foi o a amálgama da sua formação como gente.
- Para perpetuar nosso agradecimento, ofereço-lhe, Belle, este anel de brilhante.
Muitos vieram até a sua mesa para cumprimentá-la, inclusive os pais de Pierre. O presidente beijou a sua mão. A esposa a sua face.
                                                              16
 O dia seguinte foi de muita natação, de tênis de mesa, de bilhar, de tudo que aquele lugar proporcionava. Às 16 horas Pierre retornava a Paris.
Na segunda feira seguinte, Bela já tinha a relação de bistrôs, restaurantes para visitar naquela semana. Desta feita, o primeiro bistrô que visitava, parecia ser um sucesso. Fazia-se fila para entrar e já eram 14 horas e a fila continuava. O gerente não tinha tempo de lhe dar atenção. Recebeu-a por volta das 9 horas e lhe disse que podia anotar tudo que quisesse e depois, no fim da tarde, conversariam.  Quando Bela o procurou ele já tinha saído. No dia seguinte, foi quase a mesma coisa. O gerente pôde conversar um pouco por volta das 17 horas, quase na calçada da rua. Saía esbaforido, colocando o paletó à medida que andava. Estava esperando uma amiga que chegou de carro e o levou. Era um carro de luxo. A mulher devia ser alguma ricaça e ele estava na dela.


No segundo bristô visitado, o gerente não foi encontrado nos dois dias de visita. Ela foi atendida por um cozinheiro no primeiro dia e pela faxineira no segundo. Na sesta-feira voltou à sede da empresa para a conversa com o gerente do setor. Dessa forma, de visita em visita, decorreram dois meses. De um modo geral, a sua impressão sobre a maioria dos bistrôs não era boa. Fazia um julgamento mais com base em questões de qualidade de comida que ela pôde avaliar alternando seus almoços tanto nos bristôs que visitava, quanto em bistrôs concorrentes. Foi a forma que encontrou para ter uma idéia mais precisa sobre esta questão. Por outro lado, ela sabia cozinhar. Sabia fazer um bom arroz e fritar uma batata e deste tubérculo fazer um bom purê, uma das bases da comida francesa. O resto era uma carne mal passada ou bem passada. Já a questão dos enfeites que eles costumam colocar por cima, não tinha formado uma idéia melhor. Pareciam que estavam bem. Poderia também fazer alguma ressalva na questão da higiene dos estabelecimentos. Qualquer pessoa que tenha uma noção de casa, poderia fazer. A sua cozinha nos Alagados, por exemplo, era impecavelmente limpa. As panelas brilhavam até de noite. Pobre ou rico, essa questão é universal. Encontrou sinais de falcatruas nas compras dos ingredientes como no caso dos camarões. Gerentes pouco interessados, mesmo ausentes. De um modo geral, os bistrôs da empresa não eram os melhores de Paris. Outra coisa que lhe intrigava é não saber qual seria o seu futuro na empresa. Aquele estágio que fazia era para ganhar experiência e vir a gerenciar um dos bristôs ou seria designada para fiscalizá-los? Uma função interna na empresa não era cogitada, desde que não foi designada em nenhum momento para conversar com qualquer pessoa do escritório ou visto qualquer procedimento interno. Nesse “estágio” de seus pensamentos, resolveu conversar com Pierre. Tinha visto muita coisa errada e não achava justo que ficasse para si as impressões negativas que estava tendo, para que fossem corrigidas. Afinal de contas, Pierre era da família e deveria ter interesse na questão, apesar de não participar diretamente da empresa de seu pai. Tinha notado isto. Possuía uma sala no edifício sede da empresa, mas nada tinha a haver com os negócios dela. Tinha sua própria profissão. Era sociólogo. Dava palestras e no futuro seria um professor de faculdade. Um grande professor. Telefonou para ele e pediu que fosse até seu apartamento.
- O que é que há  Bela, porque me chamou até aqui. Não está gostando do trabalho na empresa ou outra qualquer coisa?
- Em absoluto, filho. (Só o chamava assim). Muito pelo contrário. Quero fazer mais, mas não consigo. Acho que já era tempo de eu estar realmente trabalhando e só faço estagiar bistrô por bistrô. Já estou cansada de ver muito coisa errada, mas não sei se estão mesmos errados ou tudo é assim mesmo, isto é, faz parte do sistema de trabalhar de vocês.
- Como assim Bela? Coisas erradas?!
É. Acho que buli num vespeiro. Filho. Dentro de meus conceitos de dona de casa, de pessoa experiente na vida, tenho reparado muita coisa errada nos bistrôs de seu pai e não podia fazer nada porque sou apenas uma estagiária. Fui designada para aprender, mas não posso aceitar aprender coisas que considero erradas. Quero voltar para o Brasil.
- Calma Bela. Vamos analisar bem a questão. Você está constatando muitas coisas erradas e por ser apenas uma estagiária não quis denunciá-las ao gerente da área. Nem mesmo sabia se, efetivamente, as coisas estavam realmente erradas porque você não tem os parâmetros necessários, não é isto?
- É isto Pierre. Você como homem inteligente que é, já percebeu tudo em segundos. Não tenho parâmetros. Não sei de nada. Não sei o que faço. Por onde me guiar. Estou confusa. QUERO IR EMBORA. Quase gritava.
O que você constatou deveria ser da alçada do gerente do setor e, parece que ele não está com nada. Quando essas coisas acontecem, ficam muito caras. Devem estar prejudicando o lucro da empresa em milhões. Meu pai precisa saber disso urgentemente. Sei que ele é o inocente nessa história. Deve ter muitos sabidos no meio. Não visite nenhuma loja hoje. Ligarei para você.
No dia seguinte no primeiro horário, Pierre sentava à frente da mesa de seu pai. Contou tudo que estava se passando. Pai, esses seus gerentes não estão visitando as lojas. Estão enfurnados aqui no escritório e as lojas estão ao léu. Foi preciso uma estagiária, verificar in loco, O que é que estes caras estão fazendo? Noutro dia fui almoçar num deles, o Paris, e a comida foi devolvida.
- Um minutinho. Vou ligar para ele. Seu fulano de tal, o senhor tem visitado os bistrôs? Tenho senhor, pelo menos umas três vezes por semana. O senhor sabe me dizer o nome do gerente do Bistrô Paris- - No momento não me ocorre. São tantos. – Está bem.  Depois eu lhe falo.  Secretária ligue para três bristôs e pergunte se o gerente geral do setor tem visitado a loja. Minutos depois a secretária retornou a ligação para informar que todos disseram que não, fazia meses. Dois deles, nem conheciam a pessoa.
O pai de Pierre coçou a cabeça e numa expressão de desânimo disse que aquilo não tinha cabimento. Os caras ganham bem. Deveriam ter mais interesse. Como poderiam perceber erros, ficando atrás de uma carteira.
- Me veio uma idéia. Vou nomear nossa amiga como Supervisora Geral de Bistrôs. Vou lhe dar todos os poderes. Autoridade. Dirigir-se-á somente à minha pessoa. Nada de passar por esse “gerentizinho”. Vou ver o que faço com ele. Mande ela me procurar ainda hoje à tarde. Vou agendar o horário das 14 às 16 horas só para essa questão.
De imediato, Pierre ligou para Bela – Meu pão pai quer lhe ver hoje às 14 horas em ponto. Você vai ter uma novidade. Não se atrase. O velho é muito pontual.
- D. Bela, meu filho me relatou o que a senhora constatou nos bistrôs que visitou, sendo apenas uma estagiária. Teria encontrado muitas falhas de ordem diversa,  mas ficou em dúvida se as denunciava a quem quer que seja aqui na empresa ou ficava calada. Mas como a senhora é expedida mesmo, procurou meu filho e lhe relatou e ainda ameaçou ir embora para o Brasil. Não precisa ir. Eu também não sabia o que estava ocorrendo e já que a senhora já está no caminho da bagaceira, acho que vou nomeá-la  supervisora do setor de Bistrôs e deverá se dirigir diretamente à minha pessoa. Só a minha pessoa. Teremos uma reunião todas às sestas feiras a partir das 14 horas para que possa me apresentar um relatório das atividades. Se a senhora achar algum problema grave, pode entrar em contato comigo a qualquer hora ou dia. Estamos combinados?
-Muito obrigado senhor presidente. Tenho uma pergunta a fazer. Posso ter acesso ao movimento financeiro diário de cada loja? Preciso fazer algumas comparações.
- Claro que pode. Quer começar agora? Pegou o telefone. – Dona Clara, estou aqui com dona Bela que agora é a nossa supervisora de bistrôs e quero que a senhora lhe dê acesso ao faturamento diário e mensal de cada loja. Ok? Muito Obrigado.
- E a nossa encomenda dos temperos da Bahia, o senhor já providenciou?
- Dona Bela  estou tendo dificuldade em importar esses produtos por causa de licenças sanitárias aqui na França. Talvez consiga através da Espanha que já tem um comércio mais regular com a Bahia.
                                            17
Dona Clara era uma senhora de seus 50 anos. Já trabalhava na empresa há mais de 25 anos. Tinha a chefia do escritório. Tinha todos os dados. Zefa anotou o faturamento de cada bistrô que já tinha visitado e à medida que fosse conhecendo os demais, iria fazendo sua relação e as comparações necessárias. De logo, notou um disparate incrível. Aquele bistrô do gerente que a deixou na calçada tinha o faturamento diário quase igual ao Bistrô Paris. Segundo se lembrava, o bistrô do “apressadinho” tinha uma freqüência de público sensacional, chegando a fazer fila ainda às 14 horas.  O Paris, coitado, vivia às moscas. Pouquíssimos clientes, muito provavelmente pela qualidade da comida e do serviço. A casa cheirava à detergente.
Resolveu começar  pelo Simon’s Bistrô, o do nome do homem. Desta feita, encontrou o gerente. Byron era o seu nome – só agora ficou sabendo. Na última vez que o viu o homem só fazia correr. Deixou-a na calçada da rua.
- Meu nome é Bela, Bela de Jesus, sou a nova supervisora dos bistrôs da rede do senhor Simon.
- Supervisora? A senhora não era estagiária?
- Sim, porque a surpresa?
- A empresa nunca teve supervisor, muito menos supervisora, uma mulher. Quando tenho algum problema me dirijo diretamente ao meu Gerente de Bistrôs, senhor Edmond. Conhece-o, não é verdade?
- Claro que conheço. Minha segunda entrevista na empresa foi com ele. Mas, de hoje em diante o senhor vai ter que acatar minhas instruções. Se o senhor tiver alguma dúvida, favor ligar para o presidente da empresa.
- E o Edmond, como é que fica?
- Pergunte ao presidente. Parece que o senhor Edmond é mais gerente de carteira e eu sou de visitar as lojas como agora estou fazendo com a sua.
O homem era mesmo ousado. Ligou para o Edmund no seu celular. Zeca só ouviu ele dizer... estou aqui com uma senhora... e foi se afastando. Logo após voltou mais solícito.
- O que a senhora quer ver?
- Tudo, desde a cozinha até a porta da rua ( onde ele a havia deixado na calçada...).
E Zefa realmente acompanhou todo o movimento da loja. A chegada dos empregados; do chef; dos garçons. Olhou suas unhas, seus cabelos. Acompanhou a limpeza do recinto de refeições, por sinal, muito boa. A casa era um brinco. Só o gerente era muito metido. Queria reparar a que horas ele sairia de tarde. Será que aquela moça do belo carro virá apanhá-lo? Fixou-se nessa idéia o dia todo. Não sabia por que. E como aconteceu no outro dia que ali esteve, o pequeno restaurante se encheu de gente. Fila para entrar. Os clientes recebiam uma ficha numerada. E quando deu cinco horas o homem desapareceu. Deve ter ido com a moça do carrão. Estranho! Será que é isto todo o dia? Amanhã, telefonaria perguntando por ele às 5.10.
No dia seguinte, Bela foi ao Bistrô Paris, da menina de óculos de tartaruga. Não tinha sido demitida. Resolveram dar-lhe uma segunda chance. Talvez sem aqueles óculos enxergasse os problemas da sua loja. Resolveu ser franca com ela. Filha, agora eu sou a supervisora de bistrôs da empresa. Quando você me conheceu eu era apenas uma estagiária. Estava visitando as lojas para conhecer seus problemas. Agora é hora de trabalhar. Vamos começar com os horários de chegada dos funcionários. A faxineira, por exemplo, deve chegar aqui às 8 horas.
- Mas ela chega mais ou menos nesse horário.
- Não chega, filha. Naquele dia, ela chegou eram 9,30 h. e até que mudasse a roupa, só iniciou a limpeza por volta das 10 horas. Às 11 já chegava cliente e ela ainda estava agachada no chão passando detergente. Vi com esses olhos. Está bem, já são 8,30 e cadê ela? E como se desenhava, a moça chegou às 9 horas. Chamou-a num canto e falou. – Você precisa desse emprego? - Claro que preciso.  -Então, vamos fazer um trato. A partir de amanhã, você vai chegar às 8 horas em ponto. Vou ver o seu cartão de ponto.
Quando o chef chegou junto com dois cozinheiros, também atrasados no horário, Zefa  começou a conversar com ele. Explicou: da vez passada, tinha almoçado no restaurante e não tinha gostado do arroz que junto ao purê de batata, são a base da maioria das comidas. Ele concordou. – Pois bem. Gostaria que o senhor recheasse o arroz numa base de cebola, sal e alho, este último muito pouco.
- Mas senhora. Eu nunca fiz assim.
- Agora o senhor vai fazer “assim”, sob minha responsabilidade. Outra coisa: qual é a cumbuca que o senhor usa para colocar o arroz nos pratos, conforme é costume aqui na França?
- Esta.
- Não tem uma maior?
- Tem, dá uma vez e meia de arroz. Vai encarecer o prato. Os clientes não vão gostar do preço.
- - Primeiro, quais clientes? Uma meia dúzia de pessoas. Segundo, os preços vão ficar o mesmo.
- Mas como assim?
- Da vez passada quando aqui estive, reparei o quanto de arroz foi jogado fora das sobras das panelas de cozimento. Dava para encher umas vinte cumbucas. Agora não vai acontecer mais isto.
- Mas como? Como poderei regular?
- Primeiro o senhor vai fazer uma determinada quantidade, bem menor do que aquela que o senhor fazia. Em seguida, de acordo com o movimento da casa que o senhor poderá ver quando quiser, o senhor cozinha mais. Sabe o que vai acontecer? Não teremos tanto sobra e a segunda remessa de arroz sairá mais fresquinha.
Mas, é muito mais trabalho.
- Trabalho?. Qual nada. Se o senhor costuma sair, por exemplo, às 7 horas, continuará saindo a esta hora, consequentemente não haverá mais trabalho. É o mesmo trabalho mais consentâneo com a realidade das coisas. Entendido?
- Entendido, senhora....
- Bela  – Bela de Jesus. Gosto mais de ser chamada pelo primeiro nome.
Ainda tinha que conversar com aquele homem. Tinha que melhorar seu purê e preparar melhor as carnes. Mas, ia encher a cabeça do homem de muita coisa, de modo que resolveu deixar para outro dia.
Foi em cima da faxineira. Mandou ela diminuir a quantidade de detergente. Varreria primeiro; em seguida passaria um pano com detergente e depois um pano molhado, apenas com água.
- Mas senhora, não é assim que se lava.
Então como é que é?
- Varro; passo água e depois venho com o detergente para ficar o cheirinho de limpeza. A senhora quer tirar esse cheiro?
- Você já almoçou aqui no restaurante alguma vez?
- Não, senhora.
- Pois bem, Eu almocei. Não suportei  o tal cheiro de detergente que você está elogiando.  Entenda uma coisa. Após você ter varrido e bem varrido, aí você passa o detergente para matar as bactérias que estão em todos os lugares. Estando elas mortas, aí você vem com a água e enxuga.
- A senhora é quem sabe. Já falou com a dona Aline sobre isto?
- Diga a ela que foi eu que mandei.
Depois foi a vez dos garçons. Eram três. Não havia essa necessidade. Dois e estava bom para o movimento que tinha o bistrô. Resolveu conversar com o mais simpático e falante.
- Seu nome é Charles. Estou vendo aqui no crachá. Você está satisfeito aqui?
- Estou senhora.
- Pois bem. Este restaurante está com o movimento muito fraco. Se continuar assim, vai ter que fechar e em fechando o senhor vai perder o emprego aqui na empresa. Outro dia almocei no restaurante da esquina, o Benoit, e tinha um garçom com o cardápio na mão, convidando os clientes para entrar. Muitos paravam, olhavam os preços e entravam. Você vai fazer a mesma coisa que seu colega daquele restaurante. Vai se posicionar na porta com um cardápio em mão e, gentilmente, convidar os passantes a entrar.  Ok?
- Mas, senhora?
Bela já estava “cheia” de ouvir aquele “mas senhora?”
- Não tem nada de “mas senhora”. Faz parte. Precisamos melhorar nosso faturamento e como lhe disse no princípio de nossa conversa, se não melhorar o senhor vai perder o emprego porque isto aqui vai fechar Tem mais uma coisa. No princípio, vou com o senhor para essa porta e também vou empunhar um cardápio e convidar Deus e o mundo. Foi o que fez.
Naquele dia, o restaurante se não lotou e não se fez fila, praticamente triplicou a presença de público. Bela reparava a todo o momento se havia alguma sobra de arroz nos pratos recolhidos. Não havia. As pessoas tinham gostado. Mais quantidade e melhor gosto. Por sua vez, o chef teve que fazer por mais duas vezes a quantidade de arroz. Quase não houve sobra.
- Amigo, amanhã estou aqui cedo para vermos esse seu purê.
- Desta vez, o chef riu. Essa mulher é danada...
Como prometido, Bela voltou no dia seguinte. Observou a entrada dos funcionários que foi mais ou menos corrigida e juntou com chef.
- Vamos lá. Como é que o senhor faz o purê?
- O chef explicou.
- Pois bem, é uma forma de fazer, mas precisamos mudar um pouco. Primeiramente, o senhor vai pedir ao comprador da empresa batatas “asterix”, de casca avermelhada. Elas absorvem menos água. Quanto menores, melhor. Nada de batata grandona. Nas grandes você tem fazer muitos cortes e pode prejudicar a qualidade. É preferível cozinhá-las com casca. Nesta hora o senhor coloca um pouco de alho e louro e uma pitada de noz moscada, sem exageros para não prejudicar o sabor das batatas. Em seguida, o senhor espreme as batatas ainda quentes, tão logo sejam retiradas da panela no seu “passe-ville”. Para finalizar, use um pouco de leite fresco e manteiga. Dois quilos de batata rendem 5 porções. Está aqui a receita. Passe à mão.
Rendimento: 4 porções
Ingredientes
1,2kg de batata asterix
2 litros de leite integral
1 folha de louro
1 ramo de tomilho
1 dente de alho
Sal a gosto
Creme de leite fresco
5OO grs.  de manteiga
Modo de preparo
Descasque as batatas. Corte-as ao meio e coloque numa panela juntamente com o leite integral, o louro, o tomilho, o alho e o sal. Complete com um pouco de água para cobri-las inteiramente e cozinhe durante aproximadamente 1 hora.
Escorra e descarte o tomilho e o louro. Passe pelo passe-vite ou por uma peneira e, em seguida, com um fouet, incorpore o creme de leite e a manteiga na quantidade necessária. Verifique o tempero e sirva imediatamente.
Dica
Se o purê estiver com textura elástica, incorpore um pouco de água quente e bata com fouet para adquirir a consistência correta.
Quando o senhor, aprontar a primeira quantidade, pode me chamar para eu possa provar.
- Mas senhora, Não temos a batata Asterix.
- Não tem problema, amanhã o senhor terá. Vou providenciar. Faça com a que o senhor tem.
E o purê saiu uma delícia. O chef voltou a rir para Bela.
Na porta, além do garçom devidamente posicionado, Bela preparou um cartaz numa espécie de cavalete que estava jogado do almoxarife e colocou os preços dos principais produtos. Estavam todos mais baratos que o do concorrente na esquina.  Tinha feito uma pesquisa. Pequena diferença, mas estava.
Foi um Deus nos acuda. O restaurante se encheu de gente. A menina de óculos de tartaruga teve que virar garçonete e Bela ajudando.
- Vou pedir ao escritório que providencia a deslocação de um garçom de outra loja.
- Zefa reparou que também as carnes estavam melhores, como menos gordura. Provou de uma delas e gostou. Concluiu. O cara sabe fazer, só que não estava caprichando. Quando melhorou o gosto do arroz e do purê, praticamente como que se sentiu na obrigação de fazer a sua parte. Desta feita foi Bela que sorriu para ele e ainda levantou o polegar aprovando.
Naquela semana, aquela loja faturou quase 10 vezes mais. Anotou o antigo e o novo faturamento. A loja estava recuperada.
Na sesta-feira às 14 horas Bela já estava aguardando o presidente chegar. Não demorou 5 minutos e ele apareceu. Mandou logo ela entrar.
– Como foi dona Belle?
– Bem senhor Simon, principalmente no Bistrô Paris. Quando estava estagiando, foi o primeiro que visitei. Já tinha colhido todas as informações necessárias. Já sabia do que precisava. Hoje, está se rivalizando com o Benoit que fica na esquina em local mais visível.
- Vamos ver isto em números. Vou acessar a Internet. Temos o faturamento de cada loja e vamos ver o percentual de alta dessa loja, uma das mais antigas do grupo, bem como temos o quanto venderam a cada dia.
O Presidente ficou algum tempo olhando a tela e depois se virou para Bela e lhe disse: senhora, essa loja está com o faturamento lá embaixo e nos dias que a senhora passou lá, o faturamento ficou na mesma.
- O que? Senhor Simon, fiquei lá de segunda até ontem e a casa se encheu de gente. Não é possível? O mesmo faturamento de antes? Nunca! Está havendo algum erro. O senhor acessou a loja certa?
- Acessei. Olhe você mesma e virou a tela do computador na direção de Bela.
- Meu Deus. O senhor está sendo roubado. Aquela menina “olhar de tartaruga” está roubando feio.
- Dona Bela, a senhora está sabendo o que está falando. É muito grave.
- Presidente, mande uma pessoa de sua confiança dá uma olhada nesse bistrô a partir da segunda feira próxima. Vai ver que a casa está ficando cheia.
- Eu mesmo irei. Posso pegar a senhora em sua residência às 11 horas? Ficaremos olhando de longe, dentro do carro. Perto das 12 horas, chegaremos lá e se verá o movimento do bistrô, bem como o do Benoit.
- Combinado Presidente. Mais alguma coisa?
- Não. Dona Belle, passe bem, bom domingo. Vai até o sitio de Pierre?
- Não, não vou, não devo sair de casa.
No sábado, por volta das 11 horas, Bela se dirigia de novo à rua onde estava localizado o Bistrô Paris. Chegou ao local quase ao meio dia. Ficou de longe olhando o movimento da casa de refeições. Há todo momento, entrava gente até que se formou uma fila de uns 30 metros na calçada no aguardo de lugar. Foi certificar-se que não estava sonhando quando disse ao Presidente que o movimento havia crescido umas 10 vezes, pelo menos. Fora até modesta no número de crescimento. Crescera muito mais. Em seguida, em vez de ir almoçar no bistrô da rede, entrou fácil no Benoit. Pediu filé com arroz e purê de batata. Queria certificar-se da qualidade do prato e fazer a devida comparação com o do Bistrô Paris. Interessante! Desta feita, não achou tão bom quanto à primeira vez que esteve almoçando no mesmo bistrô. Puxou conversa com o garçom.
– Aquele bistrô do outro lado da rua, o Paris, influencia no movimento deste daqui? –
 Há um tempo não influenciava não. Só andava vazio. De uma hora para outra, a clientela daqui está toda indo para lá. O dono já está preocupado. Já mandou até garçom ir embora.
Bela ficou mais tranqüila. Retornou para seu apartamento pensando mil coisas. No domingo, praticamente não saiu da cama. Ficou assistindo televisão. Na segunda se aprontou por volta das 10 horas e ficou aguardando o presidente. Toda hora, olhava através da cortina. E bem na hora marcada, um carro preto parou na frente do seu edifício. Era o presidente. Desceu às pressas.
- Bom dia senhor Simon.
- Bom dia, Dona Belle. Como passou o domingo?
- Passei bem, mas não saí de casa. Também estava chovendo que nem hoje.  
- Esta chuva vai durar uns dias. Em Paris, quando começa a chover, parece que não quer parar mais. A temperatura deve cair bastante. Aliás, já está frio. A senhora sente muito frio, deve sentir?
- Não sinto muito. Parece que me acostumei lá nos Alagados. De noite, em cima do mar, é aquela umidade que aqui não tem.
Estava claro que o presidente estava evitando falar no assunto que estava gerando aquele encontro numa manhã chuvosa em Paris. Por fim, chegaram. O carro ficou do outro lado da rua e o vidro escuro não dava nem para perceber que tinha gente dentro. Bela estava preocupada com aquela chuva. Iria prejudicar o movimento, mas que nada. Quando deu meio dia, já estava cheio e começou a se formar pequena fila na calçada. Vez em quanto ele olhava para o Benoit e a coisa estava ali bem morna.
- Vamos para a empresa dona Belle. Desculpe-me de todo coração. Se estão roubando aqui, também estão roubando nas outras lojas e até em supermercados.
- Senta aí Dona Belle. Você tem alguma outra desconfiança? Outra loja que a senhora tenha recuperado, por exemplo.
- Tenho de uma, mas esta é um sucesso de público. Trata-se do Simon’Bistrô, justamente aquele que tem o nome do senhor.
- Mas esta loja é muito movimentada! Costumo ir lá com uns amigos, justamente por causa desse nome horrível. Porque ela?
- Justamente ao contrário. Tem um grande movimento de gente e o faturamento pode estar lá embaixo. Agora o senhor já tem um parâmetro de comparação. O Paris com o Simon. É só Audi- torar o faturamento do Paris, com uma pessoa direta no caixa e recolhendo o dinheiro de cada dia e comparar com o faturamento do Simon que o senhor deixaria livre de controle. Depois é só fazer as devidas comparações.
O presidente olhava para aquela mulher, mais do que admirado. Como ela percebia as coisas! Pierre já lhe tinha falado que ela era meio vidente. Adivinhava sempre.  Antecipava-se aos próprios pensamentos das pessoas.
- Presidente, o senhor deve estar pensando que eu sou irresponsável em apontar uma loja sem que se tenha uma prova concreta, mas eu sinto que há algo de muito errado com ela e seu gerente.
Simon chegou a tomar um susto. Não é que a própria advinha mesmo o que as pessoas pensam. Era preciso ter cuidado consigo próprio.
Foi o que fez o presidente. Deu férias à mocinha dos óculos de tartaruga e colocou uma pessoa de sua confiança no caixa do bistrô. O dinheiro era depositado no banco em conta separada. Deixou o outro bistrô livre de qualquer controle. Faria as comparações de faturamento na próxima sesta-feira. Zefa deveria estar presente.
Naquela semana, Bela  fez modificações em mais duas lojas. Numa delas, o problema era o chef. O homem não entendia nada. Não sabia como haviam contratado uma pessoa daquela. Teve uma idéia. Ligaria para o chef do Bistrô de Paris e o convidaria para dar uma mão no bistrô que estava visitando. Ele treinaria o colega. Antoine vibrou de contentamento. A “chefona” estava acreditando nele. Grande mulher. Conversou com um dos auxiliares, o mais antigo, orientou-o e seguiu para o encontro com dona Bela.
- Ensina esse pessoal a cozinhar. Não se esqueça de mudar a cumbuca do arroz. O chef riu.
                                                               18
Bela quase não almoçou de tanta ansiedade. Uma hora antes do momento da reunião com o presidente, já andava de um lado para o outro na ante-sala. Já estava deixando nervosa a secretária do homem.
- Senta dona Belle. Assim a senhora vai se cansar e vai começar a suar e a senhora sabe como é o presidente.
- Como assim?
OH! Deixa para lá.
Também o presidente chegou mais cedo, por volta das 13.40. Vinha acompanhado de uma mulher, por sinal, muito bonita.
- Essa é dona Belle e essa é dona Marly. Foi ela que ficou no caixa do Paris. Deverá ser a nova gerente da loja. A gerente atual foi demitida.  A senhora tem toda razão. Estão nos roubando e muito. A loja teve um faturamento recorde. Ultrapassou todas as outras. Vi os resultados antes do almoço. Não podia esperar mais. Mandei que dona Marly viesse almoçar comigo. Estamos vindos desse almoço, do qual participou o Diretor Financeiro. Se na média das lojas está acontecendo isto, o prejuízo estará indo para milhões de euros. Só falta apurar o faturamento do Simon. Já devo ter seu faturamento no computador. Está aqui, um dos mais baixos de toda a rede e, justamente, o que mais presença tem. Claro que o seu gerente está nos roubando.
- Senhor Simon. Tenho a impressão que esse cara tem haver com o desfalque das outras lojas. Todas as tardes, a partir das 17 horas, ele sai com uma determinada moça num carro de luxo. Tenho a impressão que ele sai por ai arrecadando, loja por loja. Os gerentes devem ficar com uma parte e ele com o grosso. Deve ser uma quadrilha.
- Meu Deus, a senhora parece que matou a charada. Faz sentido! Vou contratar um detetive para acompanhá-lo, bem como esquadrinhar seu patrimônio. Este homem está conosco a mais de cinco anos. Deve ter roubado milhões.
- Acho bom o senhor também esquadrinhar – êta palavra difícil – o seu Gerente de Bistrôs. Tenho a impressão que também ele está envolvido.
Feitas as investigações, o patrimônio dos dois homens não era condizente com o que ganhavam. Tinham carros de luxo, diversos apartamentos, casas de campo, etc. Foram presos. A mulher que ia buscar o gerente do Simon todas às tardes era uma amante do gerente de Bistrôs. Ele era o chefe da quadrilha. Comandava as ações sem sair de sua carteira. Zefa desconfiou do homem desde o princípio.
Na reformulação do quadro de funcionários da empresa, Simon convidou Zefa para Gerente de Bistrôs. Aos sábados, invariavelmente Bela se  dirigia para Ville de Houilles onde ficava o sítio de Pierre. Muitas vezes  Pierre e Angéline nem estavam lá – estavam viajando – mas mesmo assim Zefa ia. Não tinha melhor programa em Paris para um fim de semana..  Estava se tornando como se fosse a dona do mesmo. Recebia os amigos de Pierre que a adoravam. Ela fazia, na maioria das vezes, a feijoada brasileira. Estava se tornando famosa. A cada dia, os amigos convidavam outros amigos para comer o delicioso prato. É sabido como é sitio. Um vai convidando o outro e daqui a pouco se torna um clube. Pierre teve que alertá-la. Nesse sentido, os costumes da França eram os mesmos do Brasil. Ninguém pode ter certa privacidade. Bela concordou e para quebrar a cadeia, levou um mês sem ir ao sítio. Quando telefonavam, o caseiro dizia que o sitio estava em reforma. Em seguida, instruiu o caseiro e sua mulher que dissesse que iam consultar os donos e depois retornaria a ligação. Nunca era retornada. Aos poucos a freqüência dos “novos ricos” foi diminuindo, até se tornar normal. Pierre e Angéline fizeram a seleção junto com a própria Zefa. Da maioria dos recém novos convidados, Zefa só selecionou dois casais. Um que também tinha um sítio num vilarejo próximo aonde Zefa às vezes ia e o outro um casal franco-brasileiro. A mulher era brasileira e se tornou muito amiga de Bela. Ela morava em Paris e algumas vezes, as duas iam juntas ao shopping, à noite.
Na empresa, Bela tinha uma grande tarefa pela frente. 15 gerentes de lojas foram demitidos, envolvidos no grande roubo. Tinha que fazer a reposição. Preocupava-se com a forma pela qual os candidatos eram aprovados. Primeiro, eram selecionados pelo Departamento de Recursos Humanos e em seguida eram encaminhados a ela. Não achava certo. Ela era a gerente do setor. Achava que primeiro ela tinha que aprovar o candidato e os melhores encaminhados ao Departamento de Recursos Humanos para os psicotestes da vida e outras providências. Era necessário primeiro avaliar a simpatia, a comunicação.  Os melhores seriam então escolhidos, mas todos eles passaram primeiro pelo crivo da Gerente de Bistrós. Naturalmente que o Diretor de Recursos Humanos não gostou quando a questão foi parar na mesa do presidente para ele decidir. O presidente preferiu o sistema de Bela, como se verá adiante. Tentou explicar ao seu diretor que, obviamente, o gerente do setor é quem sabe das características de um candidato para gerenciar uma casa de alimentos, lidar com os garçons, com o chef, etc., contudo, o que mais prevaleceu na escolha do presidente foi o potencial de Bela em “adivinhar” as coisas. Ela também saberia se os candidatos eram bons ou não.  O diretor era um “babaca” junto a ela. Arrependeu-se desse pensamento desairoso daquele homem, mas ele ainda estava muito magoado com o que havia acontecido na empresa e todas as pessoas presas, passaram inicialmente por ele.
-  Dona Belle escolhe e o senhor faz seus testes.  - Aliás, vou lhe ser franco, eu nunca gostei desses tais testes. Aliás, vou lhe contar uma pequena história sobre esses testes. Quando ainda tinha vinte e poucos anos e me candidatava a um cargo de gerente de uma empresa de bistrôs que nem a minha de hoje. Tinha muitos candidatos para apenas cinco vagas. Aliás, diga-se de passagem, os escolhidos seriam primeiramente subgerentes e após um estágio de, pelo menos seis meses, tornar-se-iam gerentes de lojas que estavam para ser inauguradas. Inicialmente, eram feitos cursos de língua, etiqueta, cuidados pessoas, estas coisas. Um dos colegas de nome Chartton, destacava-se no grupo pelas constantes perguntas que fazia aos professores. Percebia-se que ele estava querendo chamar a atenção para si. Os professores estavam encantados com o homem, ao ponto de um deles, ao inicio das aulas no turno de certa tarde, pedir ao grupo que também fizesse perguntas que nem o Chartton. Aquilo mostrava interesse e denotava inteligência. Chegou a dizer que “até nos psicotestes ela tinha sido o melhor”. Para encurtar a conversa, o tal do Chartton fora designado gerente de uma loja no interior da França, sem nem passar pela sub-gerência de uma das lojas da empresa. Em menos de um ano de casa, uma auditoria feita em sua loja, pegou um estouro de mais de um milhão de francos, a única moeda daquela época, e ainda mais, jogou a culpa em outras pessoas, na pobre moça do caixa. Moral da história: devia haver antes de tudo, um teste para ladrão. Estava obcecado com o roubo de sua empresa. Não. Não suportava os tais testes. Não acreditava neles. Disse isto claramente ao seu diretor. E para provar virou-se para o computador e acessou na página de “documentos” a palavra “teste”. – Querem ver uma coisa? Vou fazer uma pequena brincadeira entre nós. Outro dia salvei o seguinte teste. Prestem atenção.
Eu, Você e Ela….fomos comer no restaurante e no final a conta deu 30 Euros
Fizemos o seguinte: cada um deu dez reais…
Eu: 10 Euros: você, 10 Euros e Belle,  10 Euros
O garçom levou o dinheiro até o caixa e o dono do restaurante disse o seguinte:
- Esses três são clientes antigos do restaurante, então vou devolver 5 Euros para eles! E entregou ao garçom cinco notas de 1 Euro.
O garçom, muito esperto, fez o seguinte: pegou R$ 2,00 para ele e deu R$ 1,00 para cada um de nós.
No final ficou assim:
Eu: 10 E ( –1E que foi devolvido) = Eu gastei 9 E
Você10 E (1E que foi devolvido) = Você gastaste 9E; Ela:9E ( E 1E que foi devolvido) = Ela gastou 9E)
Logo, se cada um de nós gastou 9E, o que nós três gastamos juntos, foi 27E.
E se o garçom pegou 2E para ele, temos:
Nós: 27E - Garçom: 2E - TOTAL: 29E
Pergunta: Onde foi parar a DROGA do outro 1E ? Primeiro o senhor. Onde está o dinheiro que está sobrando?
- Presidente, não estou com cabeça para está aqui a pensar onde está o 1 euro. Estamos em serviço.
- Pois bem! Admitamos que estejamos fora do serviço. Eu como presidente da empresa, dispensei o senhor de outros serviços. E agora?
- Não sei. Deve estar por aí.
- Boa resposta. “Deve estar por aí”.
- Agora, D. Belle, onde está o 1 euro?
Bela pensou e respondeu: - Presidente. Em verdade, se o dono do restaurante devolveu 5 euros, as despesas totais da refeição de nós três foi de 25 euros. 3 euros foram devolvidos a nós e 2 euros ficaram com o garçom. 25 mais 5= 30. Despesa não se soma, despesa se subtrai.
- Viu senhor diretor. A coisa é muito relativa. O senhor como diretor do departamento de “inteligência” não soube resolver a questão, mas dona Belle pôde. Tudo é muito relativo. Acho eu que não fui muito bem naquele teste ao tempo da juventude. O Chartton foi uma maravilha. Hoje eu sou o presidente de uma das maiores empresas do País e ninguém sabe onde anda o Chartton.
Após isto, o homem passava por Bela e não a cumprimentava, essas coisas do ser humano mal preparado, pouco inteligente. Bela compreendia e deixava para lá. Em verdade, até que o homenzinho tinha alguma razão. Após tantos anos, o sistema mudar de uma hora para outra, não devia ser fácil. Mas foi assim mesmo como ela queria.
Tinha uma percepção incomum das coisas. Era direta e objetiva. Não se acomodava. Distribuía o seu serviço entre parte no escritório, principalmente, pela escolha e compra dos produtos que os bistrôs precisavam e parte na rua, visitando bistrôs. Anotava as falhas que via e convocava o gerente da loja visitada a comparecer ao escritório. Se percebesse que algum deles não estivesse devidamente habilitado, mandava-o estagiar numa loja “padrão” como ela chamava, para que melhorasse. Era sua meta que todas as lojas tivessem o mesmo padrão. Tinha obrigação de sê-lo. Servia ao público e este merecia o que de melhor pudesse ser feito. Era rigorosíssima na escolha dos alimentos. As verduras, por exemplo, eram todas orgânicas. Visitava as hortas para averiguar. Os vinhos mereciam especial atenção. Como não era sua especialidade, contratou um somallier para provar os novos fornecedores e, de vez em quando verificar a manutenção da qualidade dos já existentes em casa. Não era qualquer vinho que entrava nas suas lojas. Aumentou as quantidades de comida dos pratos. Nunca se conformou com aquelas pequenas porções de arroz e batata que viu no começo, quando ainda estagiava. Aumentou o tamanho das Cumbicas de formatação do arroz. Agora, os seus bistrôs eram citados como sendo o de melhor comida e de maior quantidade dela própria. Os adversários começaram a copiar, mas tinha também a questão do gosto. Não sabiam que ela ordenava o cozimento com cebola, sal e um pouquinho de alho. E por falar nisto, como ia seu amigo “chef” do Le Paris – agora, chamava-se assim. Mudou o nome. O Bernard agora era “supervisor de cozinhas” e, claro dos seus próprios colegas. Fazia uma festa quando via a patroa.
Já tinha seu próprio carro, bonito e seguro para viagens em estradas. Quando era perto de Paris, ela mesma o dirigia; quando a viagem ultrapassava de duas horas, convocava um motorista. Na oportunidade, em todo esse tempo, ia consultando o seu laptop, fazendo contatos com as lojas e seus colaboradores mais diretos.    
19
 Finalmente os apetrechos culinários da Bahia chegaram e como se disse, via Espanha. Bela ligou para Pierre e combinaram prepará-los dois domingos à frente. Os convites seriam feitos pelo próprio Pierre. Não queria intervir. Lembrava-se do “pito” que levou quando permitiu a expansão dos “convidados”. Insistia, porém, que na lista fosse inclusa a sua amiga brasileira. Ela realmente estava errada. O sítio não era dela.
No dia combinado, o sitio encheu, mas com pessoas das relações pessoais de Pierre e Angeline.  Os pais de Pierre e os de Angéline estavam presentes.
Bela foi bem cedo. Ela tinha que orientar os cozinheiros sobre aquela comida realmente estranha para todos eles, a começar pelos temperos. Estava presente o seu chef preferido, hoje supervisor de cozinhas. Mesmo quando os convidados foram chegando, ela de vez em quando, ia até a cozinha para ver como andavam as “coisas” da Bahia.
E, quando foram servidos o caruru, o vatapá, a moqueca de siri mole, de papa-fumo, de camarão e de peguari, que também veio, toda aquela gente ficou impressionada com o sabor dos pratos. Constantemente, ela pedia calma nas repetições. Cuidado, meus amigos, essa comida é muito “quente”. Vão devagar. Por fim foram servidas uma ambrosia e cocada de mamão verde. O evento gastronômico estava sendo registrado por um canal de televisão de Paris. A reportagem sairia no dia seguinte no horário das 10 horas.
Acessou este canal 10 minutos antes na sala de recreio da empresa. Não queria arriscar nada. E, efetivamente, como matéria social, lá estava a reportagem do almoço à baiana de Bela. A certa altura, a câmara focalizou por inteiro a sua pessoa. Dizia o locutor – Esta é a responsável por este almoço maravilhoso, Dona Belle de Jesus. Ela está de parabéns não somente pelas iguarias que trouxe do Brasil como também pelo lindo sítio de sua propriedade. Foi uma acontecimento notável de nosso high society.
Meu Deus, o cara disse que o sítio era meu. O sítio é de Pierre. Que falha terrível. Vão pensar que eu estava me gabando. Quisera que aquela maravilha fosse minha. Ligou para Pierre.
- Pierre, viu que o locutor da reportagem falou - que o sítio era meu. Que falha! Como podemos corrigir isto?
- A senhora sempre gostou dele, não é verdade? Encheu-o de gente para mostrá-lo. Tinha orgulho dele. O sitio é seu. Passei em seu nome faz mais de um mês. Agora se chama “BELLE DE HOUILLE”.  Devo me mudar de Paris. Estou indo para os Estados Unidos. Vamos ser professores de Sociologia da Universidade de Columbia em Nova York. Alguém tem que tomar conta do sítio e nada melhor que seu próprio dono, ou melhor, dona. Parabéns!

Zela transformou o sítio num belo hotel de campo. Mandou construir um anexo. Manolo e a irmã vieram para a França. Pierre e Angeline quando vinham à Paris eram seus hóspedes. Sempre no mesmo quarto quando eram os donos. Só vivia cheio de pessoas da mais alta sociedade de Paris.
                                                                     
                                                           fim

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